Tá todo mundo falando em ácido folínico. O que tu acha?
Eu acho que remédio nunca deveria ser discutido em rede social.
Ah, o Instagram…
[Vou deixar esse texto aqui porque é tanta gente perguntando, que me obrigo a esclarecer, mas não acho nada nada nada bom falar de remédio em rede social].
Vamos aos fatos. O auê em torno do ácido folínico tem justificativa com base nos trabalhos de um americano chamado Richard Frye, que há anos vem batendo nessa tecla. Esse cara, em 2108, publicou um ensaio clínico randomizado duplo-cego controlado por placebo (top), publicado numa revista séria (Molecular Psychiatry) e que mostrou um resultado realmente bom, especialmente em medidas de comunicação verbal. As 48 crianças estudadas tinham entre 3-13 anos e todas falavam menos de 25 palavras. Usar risperidona ou aripiprazol era critério de exclusão (ou seja, nenhum dos participantes estava em uso dessas medicações). Depois, em 2020 e em 2024 dois outros estudos menores encontraram resultados semelhantes, mostrando eficácia do ácido folínico não só na comunicação, mas em outros escores do ADOS.
Se funcionou, por que não?
Bom, vamos aos poréns.
Ninguém sabe a dose necessária. No primeiro estudo, a dose foi de 2mg/kg (máximo de 50mg/dia). No último, a dose foi de 5mg, 2x ao dia.
O tempo de acompanhamento nesses estudos foi de 12-24 semanas. Ninguém sabe o que aconteceu depois (mandei um e-mail para o autor perguntando; se ele responder, lanço aqui***).
Tem um complicador: todos os estudos sugerem que se realize um teste para pesquisar a presença de anticorpos específicos contra o receptor-alfa de folato (FRAA). A presença desses anticorpos está associada a maior eficácia da droga. Esse teste não está disponível no Brasil.
Quais os riscos?
Os estudos não relatam problemas, mas o tempo de seguimento foi curto. É novidade e, como tudo que é novo, fica essa dúvida do longo prazo.
O ácido folínico (leucovorina - que, diga-se, no Brasil, só existe injetável, tem que manipular) é uma forma ativa do folato (vitamina B9). Na prática médica, é usado principalmente para reduzir a toxicidade do metotrexato, que é um quimioterápico, que serve também para tratar algumas doenças autoimunes.
Embora geralmente seguro, doses altas podem trazer alguns riscos:
Efeitos gastrointestinais – Náusea, vômito e diarreia podem ocorrer, especialmente em doses elevadas.
Reações alérgicas – Hipersensibilidade, incluindo erupções cutâneas, prurido, febre e, em casos raros, reações anafiláticas.
Convulsões – Em pessoas com histórico de epilepsia, altas doses podem diminuir a eficácia de anticonvulsivantes, aumentando o risco de crises.
Distúrbios neurológicos – Em alguns casos, pode causar agitação, insônia ou excitação excessiva. (Esse efeito foi relatado no estudo).
Desequilíbrios metabólicos – Pode mascarar deficiência de vitamina B12, levando a neuropatia progressiva se essa deficiência não for corrigida.
Mais alguma coisa que eu deveria saber?
Bom, tem mais uma coisa que me preocupa. Embora não existam evidências diretas de que o ácido folínico (leucovorina) aumente o risco de desenvolver câncer, como ele é uma forma ativa do folato, é importante considerar os efeitos do metabolismo do folato no câncer.
O que se sabe sobre folatos e câncer?
Papel dos folatos no DNA
O folato é essencial para a síntese e reparo do DNA.
Deficiências podem levar a instabilidade genética, aumentando o risco de mutações e, potencialmente, câncer.
Por outro lado, excesso de folato pode estimular o crescimento de células cancerígenas pré-existentes.
Estudos sobre suplementação de folato e câncer
Alguns estudos sugerem que a suplementação em excesso de folato pode estar associada ao aumento do risco de certos tipos de câncer, como o colorretal, em pessoas com lesões pré-cancerosas.
Outros estudos não confirmam essa relação ou até indicam que a suplementação protege contra o desenvolvimento inicial do câncer.
Ou seja, ninguém sabe nada. É uma questão em aberto. O risco, ao menos em tese, existe. Como o metabolismo do folato pode afetar o crescimento celular, doses muito altas e prolongadas poderiam potencialmente favorecer o crescimento de células pré-cancerosas.
Frente a isso, em quais casos eu acho que vale a pena, talvez, quem sabe, considerar?
Eu, pessoalmente, sou muito zelosa com usar em crianças coisas que ninguém sabe o efeito de longo prazo – mesmo quando eles vêm na forma de “vitaminas". Mas a ideia de que existe algo errado no metabolismo celular de alguns indivíduos com autismo, sem dúvida, faz sentido.
Eu penso no uso desse tipo de tratamento nos casos de crianças com transtornos do desenvolvimento neurológico, incluindo o Transtorno do Espectro Autista (TEA), em que há certos sinais e sintomas que podem sugerir um possível envolvimento mitocondrial (a parte da célula que produz energia).
Quando suspeitar de um distúrbio mitocondrial?
Deve-se considerar um distúrbio mitocondrial quando a criança apresenta:
Regressão do desenvolvimento (especialmente após febre, infecções).
Fraqueza muscular inexplicável, fadiga extrema ou intolerância ao exercício.
Crises epilépticas sem uma causa identificada.
Flutuações nos sintomas (períodos de piora e melhora sem explicação clara).
Sinais e sintomas potencialmente sugestivos de deficiência no metabolismo mitocondrial:
Forte atraso na aquisição da linguagem e da coordenação motora.
Hipotonia (tônus muscular baixo), fraqueza muscular ou espasticidade.
Epilepsia ou convulsões
Regulação térmica anormal (hipotermia ou febres sem infecção).
Problemas severos no controle motor fino e grosso.
Distúrbios do sono
Fadiga severa, intolerância ao exercício
Constipação ou diarreia crônica (às vezes sugestivas de dismotilidade intestinal).
Hipoglicemia episódica (queda de açúcar no sangue).
Disautonomia (pressão arterial instável, intolerância ortostática).
Infecções frequentes ou dificuldades imunológicas.
Dificuldade de crescimento ou falha em ganhar peso.
Talvez num subgrupo de crianças com TEA haja mesmo um distúrbio mitocondrial subjacente. Nesses casos, intervenções metabólicas, como suplementação com ácido folínico, CoQ10, carnitina e outras estratégias nutricionais, podem ajudar a melhorar os sintomas.
Mas, como sempre, ainda é difícil identificar quem são os pacientes que se beneficiam dessa (ou de outras) intervenções. Falta clareza sobre quais são as doses necessárias, qual o tamanho real do risco e tudo mais. Decisão difícil.
*** Ele respondeu! Disse o seguinte: I test for the folate autoantibody (fratnow.com) and mitochondrial dysfunction. There are now four blinded studies and several open label studies. Folates are known to be safe long term. Many continue for years.
Thanks for your efforts and support.
Rick