Canabidiol... por que não
A extensão e profundidade do conhecimento científico sobre canabidiol na infância é pequena, de curto prazo e pouco confiável no momento
O uso do canabidiol na infância tem origem nas crianças com epilepsias gravíssimas, altamente refratárias a todo tipo de anticonvulsivante existente. (Se você tem curiosidade em ler sobre como tudo começou, pode pesquisar pela história da pequena Charlotte). O uso do canabidiol no Brasil só é permitido para estes casos1 — epilepsias graves e refratárias. Estamos falando de crianças que vivem vidas restritas, com dezenas ou até centenas de crises por semana, muitas vezes acamadas, sedadas de tanta medicação que não funciona. Nesse contexto, o uso compassivo de uma medicação nova, sobre o qual pouco se sabe, é altamente justificável.
Mas daí em diante, e aqui no Brasil de forma especialmente pungente, começou a surgir um hype muito grande sobre canabidiol. Estaria indicado para tudo: parkinson, demência, esclerose, ansiedade, autismo, TDAH e por aí vai. Obviamente isso vem apoiado numa série de “depoimentos pessoais” (valor científico=nulo) e numa indústria com um interesse gigante por trás (pesquise o preço da medicação para ver). Tem ainda todo um discurso sobre ser uma substância natural, fitoterápica, porque afinal cannabis sativa é um planta. Logo, dizem os interessados, não é bem remédio…
Do lado da ciência, a evidência de que canabidiol é eficaz e seguro é pífia. Os estudos bem conduzidos são poucos e a limitação principal é o tempo de acompanhamento dos pacientes – imagina o risco quando estamos falando de crianças, com cérebros imaturos. Por isso, o uso do canabidiol deve ser feito com bastante cautela.
Concordo que, dependendo da gravidade da situação, vale mesmo a pena arriscar. Chama-se uso compassivo. Entender os riscos, mas assumi-los porque a situação exige. Acredito, de fato, que o canabidiol para algumas crianças possa ser bom, transformador até. É bem possível que tenha uma série de benefícios e usos razoáveis, mas não é uma panaceia e — especialmente — não é algo cujos efeitos negativos se conheça inteiramente. As pessoas precisam, contudo, olhar com alguma ressalva e os médicos precisam um pouco de crítica antes de recomendar para crianças o uso de uma medicação que não tem respaldo científico até o momento. De nenhum estudo sério, de nenhuma sociedade médica ou órgão regulador nacional ou internacional.
Vou dar um exemplo de porque eu sou reticente com CBD. Os neurônios, se você olhar o desenho de um, tem corpo e cauda, como uma lagartixa. No alto do corpo, na “cabeça” do neurônio, existem uns fiozinhos, que são chamados de dendritos. São eles que ajudam um neurônio a se conectar no outro, formando um emaranhado, uma rede de conexões. Para esses cabelos se manterem em pé, existe uma estrutura dentro deles, que são as espinhas dendríticas.
Pois eis que recentemente se descobriu, entre tantas e tantas coisas que se pesquisam e se descobrem a cada dia, que doses baixas de THC — como as encontradas na maioria das apresentações comerciais de óleo ou extrato de canabidiol disponíveis no mercado — tem efeitos positivos sobre as espinhas dendríticas de camundongos velhos, aumentando sua estabilidade, mas efeitos negativos sobre as espinhas dendríticas de camundongos jovens.
Por que isso é relevante? Primeiro, porque esta é mais uma evidência de que os efeitos de uma droga X sobre o cérebro de uma criança podem ser totalmente diferentes dos efeitos observados em adultos. Ou seja, nada do que já foi descrito como benéfico para adultos necessariamente sinaliza benefício ou ausência de risco na criança.
Segundo, porque a imensa maioria dos produtos vendidos como canabidiol tem em sua formulação doses baixas de THC — o componente psicoativo da maconha, o que dá o barato. E os efeitos bem conhecidos do THC sobre o cérebro imaturo são negativos e indesejáveis. Ninguém em sã consciência prescreveria maconha para criança, por conta dos altos níveis de THC. Canabidiol, claro, é outra coisa. Canabidiol puro, por exemplo, já acho muito mais aceitável.
E isso me leva ao terceiro ponto: a extensão e a profundidade do conhecimento científico sobre o canabidiol na infância é pequena, de curto prazo e pouco confiável neste momento.
Realmente desejo e espero que os anos provem que essa é uma opção boa e segura para tratar quadros de ansiedade, hiperatividade, depressão ou o que for na infância ou na adolescência. Porém, até lá, há um caminho a percorrer. No momento, entendo que essa opção ainda exige cautela.
https://portal.cfm.org.br/noticias/cfm-atualiza-resolucao-sobre-prescricao-do-canabidiol-cbd-como-terapeutica-medica/