Para a família de uma criança recém-diagnosticada com autismo, a pergunta de um milhão de dólares é "e agora, o que nós devemos fazer?". Ao contrário do que muitos acreditam, de que o segredo é diagnóstico precoce + intervenção intensiva, eu responderia: envolvam-se.
Aprendam tudo o que puderem sobre autismo, observem atentamente o comportamento da criança, aprendam a falar a língua dela e ler as sutilezas da forma como se comunica. Valorizem aquilo que dá prazer a ela, não a comparem com as crianças típicas, embarquem de braços abertos no mundo dela. Não fiquem esperando que ela dance a sua dança. Cabe a nós, adultos criarmos as pontes e facilitar o caminho.
Pais e mães já são naturalmente os maiores experts sobre a criança, mas com um filho autista os pais precisam ser ainda mais astutos, sensíveis e abertos para compreender o funcionamento de uma criança que parece de uma outra cultura.
Esta semana saiu um artigo derrubando o mito de que mais horas de intervenção é melhor1. Deveria ser óbvio que isso não funciona assim — apesar do que diz a indústria do autismo — mas é sempre bom ver mais um dado objetivo corroborando a lógica.
Analisando os dados de mais de 9 mil crianças, com até 8 anos, que receberam intervenção precoce para autismo os pesquisadores mostraram por A mais B que nenhum índice utilizado (intensidade diária, duração da intervenção ou intensidade cumulativa) se associava a melhores resultados. Traduzo abaixo a conclusão deles:
Não há evidências sólidas de que os benefícios das intervenções na primeira infância para crianças autistas aumentem quando essas intervenções são intensificadas; os profissionais que recomendam intervenções devem considerar quais quantidades seriam apropriadas.
Uma intervenção, em primeiro lugar, precisa funcionar. Uma coisa que não dá resultado 2x por semana, ou ao longo de 3 meses, não vai funcionar porque é feita 5x por semana por 6 meses. Maior dose pode resultar em maior resposta se a intervenção funciona. Se não funciona, não existe nenhum sentido em dar mais do mesmo remédio. Sobredose ou, pior, overdose nunca foi bom para ninguém.
De onde tiraram essa ideia?
A ideia de que mais horas de intervenção é melhor não encontra, portanto, respaldo científico. Não que seja algo totalmente infundado, mas as pessoas parecem ter levado a coisa longe demais.
O primeiro estudo científico a demonstrar benefício de alguma intervenção para crianças autistas, lá nos anos 1980, foi feito na Universidade da California por um psicólogo pouco convencional chamado Ivar Lovaas. Numa época em que nada havia, Lovaas apresentou um tratamento pouco ortodoxo, que envolvia muito treino e até choque elétrico, e as crianças "melhoraram" — ou pelo menos, passaram a fazer coisas que não faziam antes. Foi uma esperança para os pais, finalmente, ter algum tipo de “tratamento”. Foi desse estudo original e importante — por mais revoltante e absurdo que ele pareça aos nossos olhos hoje — que saiu a concepção de que, para funcionar, as intervenções precisam ser intensivas. Não é verdade.
Por outro lado, é verdade que o cérebro é um órgão plástico e dependente de experiência, ou seja, capaz de se moldar, se adaptar e até se transfigurar em algum grau a partir das experiências (boas e ruins) que o indivíduo tem. E assim, a bailarina profissional tem seu córtex motor mais ativado do que o meu ao assistir uma apresentação de ballet; o motorista de táxi tem um hipocampo posterior (onde são armazenadas as representações espaciais do ambiente) maior que o meu, e assim por diante.
As experiências que temos — especialmente quando praticadas diariamente e intensamente — resultam em maior mudança no funcionamento e, por vezes, até na estrutura cerebral. Logo, em tese, numa terapia "intensiva" há mais oportunidade de praticar uma habilidade e, portanto, de alcançar uma mudança.
Quem dera fosse simples assim. No campo das terapias infantis, essa lógica parece funcionar para questões de ordem motora e até sensório-motora. Na fisioterapia, por exemplo. Na integração sensorial talvez. Treinos mais "simples" e mecânicos — repetições intensas de posturas, posições, movimentos, ações motoras ou experiências sensoriais — mobilizam sistemas mais primitivos, mais abertos à modulação. Já aquilo que é de ordem superior — comportamentos, afetos, trocas sociais — não dependem simplesmente de repetição.
Não estando aberto ao outro, à relação, a criança autista pode evoluir zero com a terapia. Mesmo que feita por 300 horas.
Determining Associations Between Intervention Amount and Outcomes for Young Autistic Children: A Meta-Analysis. Sandbank M, Pustejovsky JE, Bottema-Beutel K, Caldwell N, Feldman JI, Crowley LaPoint S, Woynaroski T. JAMA Pediatr. 2024 Jun 24:e241832. doi: 10.1001/jamapediatrics.2024.1832. PMID: 38913359