Um sopro de esperança
Em meio a tanta falação sem sentido, descubro que tem gente séria tentando fazer coisas boas pelos autistas
Andava há um tempão sem escrever. Cansaço, falta de tempo, trabalho demais, poderia ser por isso, mas no fundo não era, ou não era só por isso. Era porque tava me faltando um pouco de otimismo.
Nesse intervalo até que algo de bom surgisse no horizonte, teve alguns acontecimentos recentes que eu queria ter comentado aqui. O primeiro era sobre a nova prevalência de autismo de 1:31, divulgada pelo CDC este mês. No surprise: os casos seguem aumentando.
Primeiro, importante dizer, não tem nada de epidêmico nisso, nem mesmo se pode afirmar que o crescimento é exponencial. Nada para ficar assustado. A cifra está dentro do que se imagina para esse tipo de transtorno, <5% da população, ou mais precisamente 3.23% nessa estatística.
É interessante que essa pesquisa é feita a cada dois anos com crianças americanas de 8 anos, perguntando (por telefone), se elas já receberam em algum momento da vida um diagnóstico de TEA. Logo, adultos da geração TikTok que possam estar sendo diagnosticados agora não são os responsáveis pelo aumento da estatística. Tem bastante variação geográfica (muito mais casos na California do que no Texas, por exemplo) e um aumento entre a população negra e latina.
Por que os casos seguem aumentando? Não sabemos. A explicação, por ora, segue a mesma: maior conscientização, ampliação dos critérios diagnósticos e questões de acesso a direitos (na área de saúde e educação). Não é só no Brasil que o diagnóstico de TEA dá acesso a mais direitos do que outras condições.
E os fatores ambientais?
Como se sabe, a genética da população não muda de forma substancial ao longo da evolução da espécie. Nossos genes são ultrasuperbem conservados. Como o que muda é o ambiente, então, faz algum sentido, em tese, imaginar que tem algo que a gente não sabe que está contribuindo para o aumento dos casos (para além da idade em que os casais estão tendo filhos, que seguramente é um fator).
Robert Kennedy, o infame responsável pelo retorno do sarampo aos EUA, acha que são as vacinas. Essa bobagem eu nem vou comentar. Eles vão gastar milhões e milhões para fazer um estudo que quer mostrar isso – que autismo é causado por vacinas. Não bastasse a tese infundada, ainda tem mais. Ele contratou para liderar o estudo um cara chamado David Geier, famoso antivaxxer, autor de vários artigos que tentam ligar o mercúrio usado nas vacinas ao autismo e condenado por exercício ilegal da medicina. Vamos aguardar para setembro os resultados, que serão lidos com o mesmo grau de desconfiança que um estudo de medicamento patrocinado pela indústria farmacêutica.
Os poemas do Kennedy
Mas o que mais me chamou a atenção recentemente não foi a suposta epidemia, nem a insistência em culpabilizar as vacinas. Foi a pegada eugênica da fala dele sobre o autismo. Fora as bobagens usuais (que autismo é prevenível, que é fruto de uma exposição ambiental) ele soltou uma visão tão negativa sobre pessoas com autismo que é de arrepiar.
Uma tragédia individual. Foi isso que ele disse. O autismo é uma “tragédia individual”. Pior, é uma tragédia familiar. “O autismo destroi famílias, destroi as crianças.” E segue:
“Essas crianças nunca pagarão impostos. Nunca terão um emprego. Nunca vão jogar baseball. Nunca vão escrever um poema. Nunca irão namorar. Muitos nunca usarão o banheiro sem ajuda".
Não preciso dizer que houve forte comoção e reação da comunidade autista, com toda razão.
O mais interessante dessa história, contudo, para mim, foi ouvir (ler) quem se sentiu validado por essa fala – por mais horrenda que ela seja.
Diversidade, divergência e deficiência
Quem viu algo de positivo na fala do Kennedy foram os pais das crianças com autismo profundo. Eles se sentiram vistos, validados, lembrados. Num mundo cada vez mais preocupado em entender os casos leves e pensar em soluções “inclusivas”, quem vive o autismo grave no dia-a-dia sabe do que o Kennedy está falando. Quem mais precisa de ajuda, termina isolado – eles são a minoria dentro da minoria. Achei maravilhoso o texto escrito por esta mãe, Emily May:
No entanto, creio que suas observações [do Kennedy] ecoam a realidade e a dor de um subconjunto de pais de crianças com autismo que se sentem excluídos de grande parte das conversas sobre a condição. Muitos grupos de defesa se concentram tanto na aceitação, inclusão e celebração da neurodiversidade que pode parecer que estão evitando verdades incômodas sobre crianças como a minha. Os pais são incentivados a não usar palavras como "grave", "profundo" ou mesmo "Nível 3" para descrever o autismo de nossos filhos; dizem-nos que esses termos são estigmatizantes e que, em vez disso, deveríamos falar de "altas necessidades de apoio".
…Deixamos de enxergar a deficiência sob uma perspectiva puramente médica — como algo quebrado que precisa ser consertado — para uma perspectiva social que coloca sobre a sociedade o ônus de acomodá-la. O autismo se tornou uma identidade, uma maneira diferente de pensar e existir. Sob essa perspectiva, o autismo em si não é o problema; é a falta de apoio e a falta de compreensão. Muitas coisas boas surgiram dessas mudanças.
Mas há limites. Uma coisa é ensinar crianças a interagir com um colega que tem dificuldade com sinais sociais, mas minha filha não consegue dizer o próprio nome. Ela tem dificuldade para interagir. Essas são as duras realidades para famílias como a nossa — famílias cujos filhos são severos demais até mesmo para espaços projetados para serem inclusivos. E, no entanto, parece que nossas necessidades muitas vezes não são reconhecidas.
Sopro de otimismo
Se você aguentou ler até aqui deve estar se perguntando cadê o motivo do otimismo. É que acho que estamos avançando no entendimento público, social, dessas fronteiras entre autismo-doença, autismo-condição, autismo-identidade. O que me deixou animada para voltar a escrever foi uma reunião que participei ontem, organizada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) sobre “Inclusão de Pessoas Neurodivergentes no Trabalho”. Conheci gente interessante, trabalhando a sério sobre isso, na iniciativa pública e privada.
O MPT está fiscalizando, como é seu papel, o que as empresas fazem na contratação de pessoas autistas. O objetivo é garantir que as empresas não só cumpram a lei (empresas com mais de 100 funcionários são obrigadas a ter vagas para pessoas com deficiência), mas também que adaptem tanto os processos seletivos quanto os ambientes de trabalho para permitir que os autistas tenham oportunidades não apenas de acesso, mas de sucesso profissional.
Mas não é só isso. Senti que os membros do MPT estão tentando ir mais a fundo, procurando entender os furos e como tapá-los. Veja bem: o que está acontecendo, aparentemente, é que, como por lei todo autista tem deficiência, casos muito leves de autismo estão sendo usados para preencher as quotas. Daí aqui você começa a ver como o cobertor é curto, mesmo quando uma proteção legal busca, em tese, beneficiar a todos.
Tá aí meu sopro de esperança — tem gente querendo organizar isso. É uma tarefa muito complicada, mas que está sendo reconhecida e encarada. Não é sobre encontrar um balanço entre os interesses econômicos e a responsabilidade social; é sobre criar um caminho que de fato beneficie ambos os lados. Acolhimento, dignidade e respeito são importantes, mas não acredito que isso baste. Para que as pessoas e as empresas possam se beneficiar desse tipo de lei, é preciso criar estruturas que permitam a escolha das pessoas certas, para as funções certas, nos ambientes certos. Daí sim a neurodiversidade cumprirá sua função no bioma humano.
Entre os autistas do Kennedy, que talvez realmente nunca tenham um trabalho, e os autistas autodiagnosticados pelo TikTok que compram laudos na internet atrás de vantagens indevidas, tem toda uma legião de pessoas para quem esse esforço em construir políticas públicas bem planejadas pode fazer toda a diferença.
Renata, que prazer ler teu texto. Você reacendeu uma brasinha de otimismo em mim. Ainda não conhecia teu trabalho, e quem me indicou teu blog foi a Flávia Funck, do MPT, com quem conversei hoje ao telefone quando me explicava sobre o convite para colaborar com alguma fala sobre o tema em uma próxima reunião. Entrei no blog e o post que primeiro me chamou a atenção foi logo esse. Me deparo com poucos textos-falas com essa clareza e sensibilidade sobre esse tema tão complexo. Seguirei acompanhado, grato.
Fabio Villar