Tão logo ele entrou na sala, acompanhado da mulher e do filho, eu o vi enxugando as lágrimas. De pé, no canto da sala, ele chorava. Eu não quis perguntar o porquê; imaginei um misto de coisas: medo, exaustão, desesperança. Mas não era nada disso. Ele continuou chorando, enquanto eu observava aquele menino, sorridente e indiferente, brincar com um tabuleiro de formas e números. A mãe chorou depois.
O que eu ouvi daqueles pais nos minutos seguintes foi culpa. Culpa.
Embora estivessem fazendo tudo certo, eles se culpavam. Pais de gêmeos autistas, sem grande renda ou rede de suporte, eles alcançaram um nível de funcionalidade e união pouco comum. Tinham dois filhos de 4 anos que sentavam na mesa para comer, usavam os talheres e comiam de tudo; que estavam desfraldando; que tinham tempo de tela controlado; que tinham uma rotina de sono e dormiam a noite toda, cada um na própria cama; que frequentavam a escola sem percalços e podiam ir a qualquer lugar sem crises; que gostavam de livros, ouvir música e dançar com os pais.
Mas aqueles pais não viam o sucesso que tinham alcançado. Nada disso parecia importar. Como os meninos ainda se comunicam pouco - o que é comum no autismo aos 4 anos - eles se culpavam por não ter conseguido atender a uma prescrição médica de seiscentas mil horas de terapia. Na cabeça deles, o problema era esse. Eles haviam falhado porque eles, como 99,9% das famílias do mundo, não tinham como arcar financeiramente com o custo do que o médico disse que eles precisavam fazer. Estavam correndo atrás do plano de saúde, do advogado, do juiz, buscando garantir um futuro que viria não do que eles podiam oferecer como pais, mas dos "tratamentos" que os meninos não tinham.
Quantas vezes mais vamos ouvir essa história? É difícil ir contra a corrente do seu-filho-precisa-de-muita-terapia quando isso é tudo que se escuta, é tudo que falam os gurus da internet. Pouco importa se isso não tem real evidência científica, se é pouco factível, se tira tempo de convívio com os pais e com a vida real, se tem efeitos indesejados, se é financeiramente viável. Se assola a vida das famílias. Se consome a criança. Se dá lucro a uns e outros. Se coloca ideias completamente equivocadas na cabeça dos pais e tira o foco do que realmente importa. Fazer 20h, 30h ou 40h de terapia virou um novo normal quando, na verdade, deveria ser exceção.
Deixei-os chorar e depois os cumprimentei. Pedi, talvez em vão, que se libertassem daquela culpa. Tentei lembrá-los que autismo não é uma "doença tratável" – é uma condição, um funcionamento, que implica um desenvolvimento atípico, para o qual a régua da "normalidade" costuma gerar uma visão inadvertidamente catastrófica. Enfatizei que o desenvolvimento de uma criança – com ou sem autismo – é regido pela interação entre o contexto genético e ambiental dela e pelo cérebro que estes fatores engendram – não pelas terapias a que tem ou não acesso. Que o primordial era suporte, estímulo, compreensão, coisas que eles, claramente, estavam sabendo dar (até curso de AT esses pais tinham feito!).
Sugeri que tirassem as crianças mais cedo da escola não só para ir em terapias, mas para passear, tomar sorvete, ir na pracinha. Que focassem em conseguir mais suporte no ambiente da escola (o que é essencial) e, em casa, seguissem no caminho de dar estrutura, acolher e valorizar as peculiaridades dos meninos.
Acho que não consegui mudar a cabeça deles, mas plantei a semente. Fechei a porta torcendo para que, pelo menos naquele dia, eles sentissem orgulho de tudo o que haviam conquistado como pais.
Renata tu é tão necessária, lindo texto e lindo posicionamento diante das famílias!
Que lindo esse texto🩷