Os vários autismos
Como diferentes subtipos de autismo afetam a relação da pessoa com o mundo
Você já ouviu aquela frase que diz "se você conheceu uma pessoa com autismo, você conheceu uma pessoa com autismo"? O ponto da frase, obviamente, é frisar a enorme variabilidade do espectro. Ao mesmo tempo, porém, é uma frase meio obtusa porque pressupõe que o diagnóstico deveria criar uma homogeneidade entre as pessoas. É como se as pessoas se definissem pelo seus diagnósticos ou, dito de outro modo, que o diagnóstico estivesse acima das diferenças individuais.
Delimitar o que é — e o que não é — autismo virou tarefa inglória. É certo que existem muitos tipos e subtipos de autismo. O problema é que ainda não temos uma referência clara sobre quais são eles. E o que é pior – parece estarmos caminhando na direção errada.
Um pouco de história recente: até uns 10 anos atrás, antes do DSM-5, tínhamos 3 grandes categorias para diagnosticar o que hoje englobamos dentro do espectro autista. Eram elas: o autismo clássico, a síndrome de Asperger e o "autismo atípico" - identificado por siglas estranhas como PDD-NOS ou TGD-SOE (Pervasive Developmental Disorder not Otherwise Specified ou Transtorno Global do Desenvolvimento sem Outra Especificação).
No primeiro grupo, se enquadravam os autistas "de livro" – crianças fortemente isoladas, com pouca ou nenhuma comunicação e diversos comportamentos repetitivos. Os Aspergers eram aqueles com boa comunicação, mas que era atípica: tinha algo de estranho, curioso ou diferente no jeito como eles se relacionavam e falavam com os outros. Os Aspies eram também algo desajeitados do ponto de vista motor e tinham hiperfocos intensos – que geralmente eram interesses peculiares (astronomia, rotas de ônibus, tabelas de vôos, países e bandeiras, modelos de carro, dados esportivos, animais exóticos). Coisas sobre as quais eles memorizavam e colecionavam uma enorme biblioteca mental de informações que (muitas vezes só eles) consideravam fascinantes e sobre as quais poderiam falar por horas. Fora desses dois grupos, estavam todos os demais: crianças que tinham algumas características de autismo, mas que não se enquadravam em nenhum dos grupos. Os "pe-de-dê" ou "te-ge-dê", como nós médicos os chamávamos.
Só que, como as fronteiras entre um e outro grupo nem sempre eram assim tão claras como eu estou fazendo parecer, acabou-se optando – a meu ver, infelizmente – por fusionar tudo em único diagnóstico de TEA, Transtorno do Espectro Autista.
Deu ruim. "TEA" virou um saco de gatos que engloba sob o mesmo rótulo o menino prodígio da matemática, altamente verbal e socialmente inábil, e o adolescente incomunicável que passa o dia batendo a cabeça na parede. A utilidade do próprio diagnóstico se perdeu e a confusão em torno dele só aumentou.
Mas isso é só a minha opinião. O ponto desse texto é outro.
Ando muito interessada em pensar nos subtipos, ler sobre eles e refletir se existem mesmo padrões reconhecíveis nas diversas crianças que cruzam a porta do meu consultório. Uma coisa que parece mesmo se repetir é a seguinte.
De um lado, existem crianças autistas cujo maior problema são as crises (o aspecto comportamental); elas são emocionalmente muito intensas, sentem tudo, se sobrecarregam. São tipicamente crianças com alta motivação social, que buscam conexão com os outros, sincronia com o mundo, mas não encontram. E sofrem.
Do outro lado, existem crianças autistas que raramente tem alguma crise. Elas são tranquilas, obedientes. Essas crianças têm um perfil mais metódico, analítico, científico, explorador. Elas gostam de desmontar coisas, aprender coisas. Parecem mais interessadas em descobrir, conhecer e saber, do que propriamente se relacionar. Não que elas não queiram se relacionar - só parece não ser essa a sua prioridade, sua razão de existir no mundo.
Simplificando, fica mais ou menos assim a partição do autismo em dois grupos:
subtipo A: indivíduos ávidos por se relacionar, que buscam se conectar com os outros, emocionalmente, ainda que de forma "inapropriada". Demonstram fortes emoções e sentem o mundo intensamente. Anseiam ter amigos, se conectar com eles, mas não sabem bem como. Sentem-se sobrecarregados por suas emoções, pelos estímulos, pela dificuldade de se sincronizar com o que acontece ao redor e, consequentemente, têm mais crises.
subtipo B: indivíduos cuja conexão com o mundo e a própria felicidade se dá através de padrões racionais, lógicos, analíticos. Eles vão em busca de conhecimento, mais do que de conexões. Podem se perder em projetos, obsessões, fatos, números, curiosidades. Seu mundo é sobre fazer coisas, não sobre sentir. Vão buscar amigos a partir de interesses comuns. Tendem a ser mais repetitivos e, se deixados em paz, tem poucas crises.
É provável que não seja tão simples assim. Certamente existem muitos outros subtipos, outros padrões, tipos intermediários, mistos e tudo mais. Pouco a pouco, vamos desenrolando esse emaranhado e entendendo as incríveis formas e jeitos de ser autista neste mundo.
Essa semana passei por algo assim, mostrava fotos do Cléo pra um irmão do meu esposo que a muito tempo não víamos, ele dizia que lindo ai falei que o Cleozinho era autista e ele imediatamente ‘ahhhh coitadinho’ ele havia acabado de colocar o Cleozinho nesse saco de gatos. 😕