O terrorismo da neuroplasticidade
O cérebro da criança nunca para de se desenvolver - e toda atividade conta.
Recebo muitas famílias aflitas com a ideia de que o cérebro da criança “vai se fechar” depois de uma certa idade mágica - os números cabalísticos costumam ser 3 ou 5 anos.
Como uma caixa que vai lentamente se fechando, num belo dia, todo o potencial não-desenvolvido da criança se perde. Será mesmo?
Esse discurso aparece muito no contexto de promover terapias intensivas, assustando famílias e criando uma corrida desesperada contra o tempo. Quem não aproveitar a janela de oportunidades da primeira infância, estará perdido. Fazer terapias intensivas, precocemente, seria a pedra da salvação.
Não é bem assim. De fato, o cérebro da criança não é uma tábula rasa. Desde a barriga, a criança já forma um cérebro que tem uma arquitetura pré-pronta, como as lajes de um prédio. Seguindo uma detalhada programação genética, bilhões de neurônios se formam (prolifereção celular) e se colocam no seu devido lugar no cérebro (migração neuronal). Uma vez enfileirados e organizados em colunas, como verdadeiros exércitos, eles começam a estabelecer contatos e redes com células próximas. Desse ponto em diante, ficam à espera da entrada de informação para começarem a se ligar mais fortemente uns aos outros. São essas conexões entre as células, entre neurônios, que vão formando as redes ou circuitos que organizam a forma como nosso cérebro trabalha.
Esse processo é todo geneticamente guiado. Biologicamente determinado. A nossa parte é entrar com as experiências. São elas que vão dar contornos à construção de um circuito visual, auditivo, motor; de circuitos relacionados a emoções (medo, prazer), circuitos de linguagem, atencionais - diversas redes e estruturas pré-programadas, que se desenvolvem para processar de forma progressivamente mais efetiva a informação que chega para nós do mundo externo.
Quando eu digo “informação” quero dizer vivências, experiências, acontecimentos. Não uma viagem a Disney ou a conquista de um campeonato. Coisas simples, estímulos banais. O circuito visual, por exemplo, é um dos primeiros a se formar. Começa a se desenvolver ainda no útero materno, mas ali quase tudo é sempre escuro. Ao nascer, o bebê tem sua primeira experiência com a luz. E são essas vivências – de luzes, cores, brilhos – que ajudarão a desenvolver o circuito visual. No escuro, o circuito não se desenvolve. Se eu enxergar luz pela primeira vez aos 3 anos de idade, meu circuito visual, de fato, nunca mais será “normal”. Essa descoberta valeu um prêmio Nobel de Medicina em 1981.
Um outro exemplo simples, mas verdadeiro, dessa questão da plasticidade é o aprendizado de língua estrangeira: se eu aprender uma língua estrangeira quando criança, meu desempenho (especialmente minha pronúncia) nessa língua será muito melhor do que se eu aprender quando adulto. Por quê? Por que o cérebro imaturo da criança está pré-pronto para falar qualquer idioma. Nascemos com potencial para falar russo, árabe, japonês ou qualquer língua. São as experiências com o português - ouvir essa língua todos os dias - que fazem com que nosso cérebro se molde para falar o português — e meio que se feche para as outras opções. O cérebro faz a “poda” de todos os outros sons que não são úteis para o falante do português (e daí quando você tenta fazer aquele “th” do inglês sai meio esquisito).
Para qualquer outro circuito, o processo é o mesmo. A criança precisa receber informações através dos seus circuitos periféricos (olhos, ouvidos, mãos, corpo) e viver experiências – prazerosas, dolorosas, extenuantes, amedrontadoras, engraçadas – para se constituir plenamente. É disso que o cérebro precisa, é isso que alimenta o cérebro: experiências. Os neurônios estão ali, ao nascer, ansiosamente à espera de se conectar uns aos outros. À espera de uma vida, que pode ser mais ou menos rica. É aí, de fato, nesse período entre os primeiros 3-5 anos de vida, que o cérebro é mais “plástico”, mais moldável, mais ávido por experiências constitutivas. Nesta fase, o exército de neurônios pode ser recrutado para diversos papéis. Uma vez convertidos para um determinado batalhão (ie., uma função), ali ficarão lotados.
Assim, se o sol bater lá fora, e sua criança estiver monotonamente repetindo coisas na terapia, considere se não seria mais nutritivo para o cérebro ir tomar sorvete na pracinha com a mamãe.