O tal do TOD
Vivemos a era dos transtornos mentais na infância. Nos EUA, em 2021, a Academia Americana de Pediatria declarou estado de emergência em saúde mental de crianças e adolescentes. Parte disso é real: existe mesmo um aumento do número de casos ansiedade, depressão e outros transtornos nos jovens. Outra parte, porém, é fruto da banalização de diagnósticos e da perigosa tendência a patologizar comportamentos normais.
Aflitos com comportamentos inesperados e indesejados dos filhos, pais se jogam na internet em busca de respostas. “Por que meu filho bate?”, “É normal a criança odiar a mãe?”. No Instagram ou no TikTok, se deparam com experts da parentalidade, ávidos a oferecer — e lucrar — com todo tipo de conselho. Eles têm respostas para tudo. Prescrevem o que os pais devem ou não fazer, preparam o script de como reagir, numa arapuca perfeita para aumentar o desespero, o senso de incompetência e a percepção de total fracasso na função parental.
Quando as estratégias prescritas não dão certo, o próximo passo, claro, é diagnosticar a criança.
Não é que TOD (Transtorno Opositor Desafiante) não exista, mas provavelmente ele não é o que você imagina. Com a benção do DSM-5, desobediência e mau comportamento passaram a ter CID. Os critérios postulados, por um comitê de especialistas, para definir TOD no DSM-5 são inespecíficos e algo redundantes, tornanda muito fácil ganhar o rótulo. Veja abaixo:
Critérios diagnósticos de TOD, segundo o DSM-5
Um padrão de humor raivoso/irritável, de comportamento questionador/desafiante ou índole vingativa com duração de pelo menos seis meses, como evidenciado por pelo menos quatro sintomas de qualquer das categorias seguintes e exibido na interação com pelo menos um indivíduo que não seja um irmão.
Humor Raivoso/Irritável
Com frequência perde a calma.
Com frequência é sensível ou facilmente incomodado.
Com frequência é raivoso e ressentido.
Comportamento Questionador/Desafiante
Frequentemente questiona figuras de autoridade ou, no caso de crianças e adolescentes, adultos.
Frequentemente desafia acintosamente ou se recusa a obedecer a regras ou pedidos de figuras de autoridade.
Frequentemente incomoda deliberadamente outras pessoas.
Frequentemente culpa outros por seus erros ou mau comportamento.
Índole Vingativa
Foi malvado ou vingativo pelo menos duas vezes nos últimos seis meses.
Obviamente os critérios do DSM-5 não deveriam ser usados como checklist; o diagnóstico é clínico e deveria ser baseado em uma detalhada investigação de contextos e causas. Mas, na prática, não é o que acontece. A criança sai batendo, não obedece, xinga todo mundo e tá feita a avaliação: é TOD. Chegam os pais, desesperados, sofrendo, querendo uma explicação — e encontram. Meu filho tem um transtono.
O primeiro ponto importante a esclarecer é que não existe base neurobiológica ou genética bem estabelecida para TOD (mas aqui, é verdade, talvez se possa dizer o mesmo para praticamente qualquer transtorno mental). TOD não é parte dos transtornos do neurodesenvolvimento (como autismo ou TDAH), que têm uma base genética comum. Ele está englobado em outra categoria, como um transtorno do controle de impulsos, junto com transtorno explosivo intermitente, transtorno da conduta, transtorno da personalidade antissocial (descrito no capítulo “Transtornos da Personalidade”), a piromania e a cleptomania. Esse é um ponto importante.
TOD simplesmente descreve um padrão de comportamentos, que se agrupa, e é bem conhecido dos clínicos. É um nome para descrever um conjunto de sintomas ou características clínicas, descrições de comportamentos observáveis que ocorrem em algo entre 1-5% das crianças (logo, não tem 1 TOD em cada sala de aula). TOD não é a mera desobediência, indisciplina e comportamento desafiante, provocativo, o TOD real é bem mais do que isso. É um transtorno mental.
A criança que tem TOD de verdade ela desobedece e provoca e briga pelo prazer que isso lhe traz. É intencional, deliberado e satisfatório. Ela não está simplesmente reagindo de forma explosiva e imatura, desproporcional e inconsequente. A grande maioria das crianças que apresenta comportamentos opositores é, primordialmente, pouco equipada emocionalmente; tem baixa capacidade de autocontrole, auto-regulação do comportamento. Ela é sensível e busca atenção de formas equivocadas, tendo aprendido no dia-a-dia padrões disfuncionais, que terminaram sendo reforçados inadvertidamente, num ciclo de indisciplina pouco contida e mal-manejada.
O falso TOD é um misto de falta de limites com dificuldades emocionais, em que parte da explicação está na criança, parte no contexto – mas nada disso é transtorno.
Na psicopatologia, o TOD é primo-irmão do Transtorno de Conduta. Sabe aquela criança que maltrata animais? Que foge de casa, rouba objetos, ateia fogo e destrói coisas de propósito? Transtorno de conduta é entendido como a versão mirim do Transtorno de Personalidade Antisocial — aquele dos ladrões, criminosos, gente que furta, mata. Entende?
TOD é a criança que deliberadamente faz coisas para incomodar os outros. Que é malvada, que faz coisas ruins porque quer, porque gosta de fazer isso. É aquela que guarda remorso e planeja vingança. Que ofende, xinga, desafia qualquer autoridade - não só pais ou professores. Embora o DSM-5 tenha, absurdamente a meu ver, permitido o diagnóstico a partir de conflitos com 1 só pessoa em 1 só ambiente, tenha muito cuidado. É o menino que passa por cima do segurança no condomínio, que fura pneu do vizinho com prego, que ignora e despreza as regras. Não é a criança que bate nos coleguinhas porque não sabe se comunicar bem, ou que desobedece os pais quando eles mandam ela guardar os brinquedos. Existe um mar de diferença entre as duas coisas.