Ele não nos deixava conversar. Com as duas mãos, pegava meu rosto e fazia com que meus olhos encontrassem apenas os dele. Interrompia, se atravessava, queria atenção a todo custo. Tentamos alguns combinados, sobre não agarrar meu rosto, sobre dar 5 minutos para que os adultos pudessem conversar, mas não adiantou muito. Era só o tempo de eu me afastar, me dirigir aos pais e lá vinha ele e sua urgência em falar. Sobre o quê? Com frequência, nem ele sabia.
Na minha frente, estavam dois pais que exalam paciência e compreensão. O pai caminhava com ele 10km, todo final de semana, só para satisfazer o enorme interesse do filho por plantas. No dia em que eu o conheci, ele entrou no consultório trazendo uma muda de alguma espécie que encontrou pelo caminho. Não era para mim, mas acabei ficando com ela, que segue comigo (agora plantada numa caneca com dizeres de Jung, me fazendo sorrir e lembrar dele com frequência).
Agitado no corpo e acelerado na voz, no nosso primeiro encontro ele parou apenas quando teve a oportunidade de me falar sobre toda a vegetação que orna e contorna as janelas da minha sala. Ele sabia o nome de cada árvore, diferenciava espécies e variedades, sabia sobre os frutos que elas produziam.
Eu ouvia tudo admirada: como pode uma criança saber tanta coisa [sobre os fatos] e, ao mesmo tempo, não saber nada [sobre as relações]? Não sei se o encantamento maior era meu ou dele: ele fascinado pelas plantas, eu por ele.
As coisas não andavam bem na escola. Ele andava irritado, impaciente, inquieto, com dificuldade de permanecer nas atividades mesmo com o suporte de um monitor e a ajuda de uma professora do bem.
Fiz uns ajustes nas medicações, ele melhorou, as coisas pareciam em ordem. Daí eles voltaram.
Agora ele estava fixado no tempo. O clima lá fora ditava o seu estado interior. E contrariando o óbvio, eram os dias de sol que o deixavam triste. Ele queria dias nublados. E quando olhava a previsão ou via pela janela aquele céu azul, sem nuvens, entristecia. Tristeza de verdade, a ponto de chorar.
No dia em que o revi e fiquei a par dessa nova faceta da sua mente, ele não queria mais me contar sobre as plantas. Seu novo interesse eram as aves. Pela janela, ignoramos as pitangueiras e os limoeiros, enquanto perseguia-mos com os olhos os gaviões-carijó, sabiás-laranjeiras e joãos-de-barro.
O que faz com que alguns autistas tenham esses conhecimentos enciclopédicos? O que se ganha e o que se perde quando o cérebro funciona assim?
Monotropismo é uma teoria psicológica e cognitiva que explica como alguns indivíduos — especialmente autistas — tendem a se concentrar intensamente em uma gama restrita de interesses ou estímulos a qualquer momento.
O termo vem do grego [“mono” (um só, único) e “tropismo” (τροπή), que significa direção, inclinação] e foi introduzido por Dinah Murray, Wenn Lawson e Mike Lesser no final da década de 1990 como uma forma de compreender as maneiras únicas pelas quais os cérebros autistas processam informações.
O conceito contrasta com o politropismo, em que a atenção é mais amplamente distribuída entre múltiplas entradas. Enquanto a maioria dos neurotípicos é politrópica, ou seja, distribui a atenção entre várias coisas ao mesmo tempo, indivíduos monotrópicos focam intensamente em poucos interesses ou atividades por vez.
O monotropismo tornou-se uma teoria fundamental no discurso da neurodiversidade e é usado para explicar características como foco profundo, interesses intensos e dificuldade em alternar tarefas ou atenção.
Foco profundo: A pessoa se concentra intensamente em algo que lhe interessa, o que pode levar a um alto nível de especialização ou conhecimento naquele assunto.
Dificuldade de transição: Pode ser difícil mudar de uma atividade ou pensamento para outro, já que a mente está fortemente “presa” a um foco específico.
Sobrecarga sensorial ou cognitiva: Como a mente está muito focada, lidar com várias informações simultâneas (como em ambientes sociais) pode ser especialmente desafiador.
A ideia central é que o cérebro monotrópico opera como um "túnel da atenção", onde apenas alguns interesses ou estímulos são processados a cada vez – o que tem naturalmente um lado bom e um ruim. Você ganha em profundidade, perde em amplitude. Esse foco em túnel pode levar a uma concentração intensa e a estados de forte envolvimento emocional com tópicos ou atividades específicos – como plantas, pássaros ou o tempo lá fora.
Ontem mandei uma mensagem para mãe dele para checar como as coisas estavam e ela me disse que ele está bem melhor, já não sofre mais com o tempo.
Ainda bem, porque hoje vai fazer sol.