Já passava das sete da noite quando eu recebi a foto: um menino sorridente numa estação de trens. Com os trilhos ao fundo, de óculos de grau, ele sorria faceiro. Harry Potter indo para Hogwarts, lembrei.
Eu o tinha conhecido há poucas horas, embora sua presença já existisse há meses na minha cabeça, fruto de uma breve interação online. Uma daquelas consultas malucas, feitas direto do carro, enquanto os pais aguardam a criança em algum atendimento. O que eu lembrava dele era justamente o sorriso fácil, a cara marota e o desprendimento em fazer o que lhe era pedido:
-Cumprimenta a Doutora, filho.
-Oi, doutora. Sorrisão.
Algo assim.
Antes de conhecê-lo, li o parecer da psicóloga. Enaltecia o aspecto social, a empatia, mas também apontava os problemas: baixa regulação emocional, ansiedade, baixo tempo de concentração nas atividades, hiperfoco em eletrônicos, baixa autonomia. Um perfil bem familiar, nada fora do esperado. Me chamou atenção, porém, um QI de 60 pontos - sugerindo deficiência intelectual.
Ele chega no consultório com aquela desinibição social, pouco freio e pouco tato, vai entrando e procurando nos armários e gavetas algo que goste. Desenterra do fundo de uma caixa transparente um tablet de brinquedo e descubro que ele é capaz de ler. Tem 7 anos. Pode ser só a hiperlexia, penso, mas começo a desconfiar do QI.
Deixo os pais me trazerem toda lista de problemas. Anoto o carrossel de terapias. Os pais são lúcidos, sabem que o cansaço do filho é o cansaço deles também. Reconhecem o próprio esgotamento e o reflexo dele no comportamento do menino. A mãe é aguerrida, tem aquele perfil lutador, insistente, quer ir atrás de tudo. Iria a pé à lua pela melhora do filho.
A inquietude dele tem algo de desajustada, por conta dos interesses restritos. Nenhum brinquedo o atrai. É do tipo concreto, que gosta de mecanismos, consequências, ação-e-reação. Nada de faz-de-conta, bonequinho, nem mesmo carrinhos parecem interessar. Ele quer apertar botões e ver as coisas acontecerem.
Enquanto destrincho a minha ladainha para os pais, menos é mais, fico olhando encantada para ele, capaz de se virar por praticamente 1h sem incomodar. Vai buscando o que fazer, dá um jeito. Quase como recompensa, deixo que explore meu celular, meu relógio, quero ver do que ele é capaz. Damos risada juntos das respostas da Siri e meu encantamento por ele só aumenta. Ele é capaz de muita coisa, se a gente deixar. Tem uma personalidade cativante e uma capacidade enorme de aprender.
Na saída, pergunto o que ele vai fazer em Porto Alegre depois da consulta, já que é visitante na cidade. O pai pergunta de um shopping por perto, sugiro outro, mas o menino tem planos diferentes. Nada de playground, papai Noel. O que ele quer é ver os trens.
Relato encantador❣️