O bendito diagnóstico
A inglória saga em busca do rótulo certo num mundo de categorias incertas, imprecisas e imperfeitas
Meu marido é psiquiatra e trabalha com adolescentes. Ele também é um baita pesquisador, renomado e premiado internacionalmente. O nome dele tá no DSM-5 — ele ajudou a escrever o livro que mundialmente define os diagnósticos em saúde mental. Na clínica privada, ele faz psicoterapia de adolescentes deprimidos e ansiosos e me soltou essa um dia desses:
-No meu consultório, eu não dou diagnóstico para ninguém.
-Como assim? - perguntei, surpresa.
-Quando os pacientes começam com essa coisa, “mas doutor, qual o meu diagnóstico?” eu digo para eles que diagnóstico é coisa pros livros, pras pesquisas, pra ciência. Pra pessoa, o que importa é isso aqui que nós estamos fazendo, é o tratamento.
Fiquei eu meio incrédula, sentindo que ele tinha alguma razão no que dizia, mas ao mesmo tempo pensando que eu tomaria um tiro na cabeça se fizesse esse discurso no meu consultório. As pessoas vêm atrás de um diagnóstico, elas pagam a consulta para isso. Elas esperam uma sentença – de preferência definitiva – ao réu de 2, 3, 4 anos. E, com frequência, esperam que isso seja feito prontamente, em menos de uma hora.
Corta. Cena 2. Adentra meu consultório um daqueles casos em que a família já foi a trezentos médicos – eu sou o fim da linha. Eles são um casal jovem e elegante, sem privações, vida confortável, boa rede de apoio, etc. O menino é o segundo filho e eles trazem na bagagem a experiência de uma parentalidade típica, onde tudo correu bem. Mas o segundo filho, de 4 anos, teve uma história diferente, que os preocupa desde 1 ano. À tiracolo na consulta, vem a fonoaudióloga que acompanha a família há anos. Logo de cara, eu aprendo que ela está ali para ajudá-los a metabolizar o que pode ser mais um soco na barriga.
O menino é uma graça, sorridente, expansivo, expressivo. Fala tudo, embora lhe faltem érres, gês, éles e outras coisas que terminam tornando difícil entender o que ele diz. Tropeça nos próprios pés, mede mal os espaços pro corpo, mas segue faceiro e confiante explorando o ambiente novo.
Na saga do diagnóstico do filho, eles já ouviram de tudo. É autismo, é TDL, é TDAH, é apraxia, é dispraxia, é o diabo-a-quatro.
Quando eu ouço essas coisas, me vem na cabeça todo o rol de outros capítulos do DSM que ainda não caíram na boca do povo: transtorno da coordenação motora, transtorno da comunicação social, transtorno do movimento estereotipado (juro, estão todos lá). Tem mais os outros, tipo transtorno de aprendizagem não-verbal (TANV), que ainda não alcançaram status técnico suficente para ingressar no sagrado olímpo dos diagnósticos “oficiais” do DSM.
Não bastasse esses pais terem recibido e sofrido com n diagnósticos, alguns desses só vieram depois de exames na criança – ressonância magnética, eletro, exame de sangue. Só não fizeram exame genético por receio de encontrar mais problemas do que estavam procurando. Foi sangue, suor e lágrimas, literalmente.
Sendo pessoas inteligentes, eles tinham claro que aquilo tinha virado uma loucura, que estava perturbando a vida de todos e os travando, como família, de curtir a infância da criança maravilhosa que eles tinham em casa. Até acidente de carro a mãe sofreu, impacatada por WhatsApps pseudo-bombásticos sobre o caso do filho. Apesar de tudo isso, eles seguiam buscando uma resposta, uma certeza, preocupados com deixar passar alguma coisa e confusos com os diferentes caminhos que tinham sido recomendados.
Tem um lado meu que completamente entende a ânsia dos pais. Lembro do dia que minha filha, com 2 anos, apareceu com joelho, tornozelo e dedinho do pé vermelhos, quentes e inchados. Na hora eu sabia que era artrite. Mas a maior vantagem que ser mãe-médica naquele momento me deu foi não precisar recorrer aos lobos. Em meio à apreensão pelo futuro dela (vai ter dor para sempre?, vai poder praticar esportes?), fui direto ler o último guideline da academia americana de reumatologia. Não só eu sabia o que ler, onde ler, mas como ler aquela informação.
Esse excesso de informação não-filtrada da internet é uma fonte infinita de ansiedade, como bem sabemos. Ficar navegando nela, se atirar e se enterrar nesse poço sem fundo, é uma receita certa de apreensão, dúvida e muita caraminhola. Nem sempre é fácil sair, especialmente quando a dúvida persiste porque a sua expectativa é algo inatingível: obter uma resposta clara – o bendito diagnóstico – para algo que é dinâmico, complexo, mutável e de limites imprecisos. Quando é cedo para dizer. Quando as coisas estão em (trans)formação.
Em algumas aulas, eu uso a imagem de um planta ou uma árvore para tentar explicar isso. Quando a semente vai desabrochando e surge um caulezinho, ali tem um começo, e esse começo diz algo, mas não entrega tudo. Só olhando esse tronco inicial, é difícil saber que tipo de folhas e flores vão surgir lá na frente. As raízes estão plantadas, mas elas não são visíveis. O que a gente faz é acompanhar o processo: ver se falta água e regar; se tem sol demais e proteger. Você presta atenção às necessidades que se apresentam no momento e oferece os recursos e o cuidado para que o organismo se desenvolva de forma saudável. Um ficus não será um bambu, ainda que lá no começo eles sejam bem parecidos ou até indistinguíveis (me perdoem os exemplos, não entendo nada de botânica). Bem cuidado, ele irá desabrochar e mostar o que ele é, mesmo que eu não consiga ver agora.
Estabelecer a espécie, o pedigree, se é briófita ou pteridófita, é coisa pros livros.
É, meu marido tem mesmo razão.
Nota: no universo dos transtornos de linguagem, essa situação caótica a que chegamos se revela bem. Nem mesmo entre os profissionais, entre os estudiosos, existe muito consenso sobre as definições e os limites de diferentes rótulos – transtorno motor de fala, apraxia verbal, apraxia de fala, dispraxia, disartria, transtorno de linguagem, etc. Mas, daí, ao invés de deixar essa discussão bem fechadinha lá entre os profissionais, jogaram isso nas redes sociais. E aí os pais ficam batendo cabeça sobre “o diagnóstico” certo. Acontece que, no fim, o que importa mesmo é que, se a criança tem problema de fala, tem que fazer fono. E deu.
Tenho uma enorme admiração pelo modo que tu escreve. Textos simples e esclarecedores, são incríveis! Sou tua fã! ❤️
Mil corações por esse texto 😍