Faz tempo que não escrevo, ainda tentando me disciplinar a uma frequência regular por aqui. Mas, como de costume, minha gana de escrever foi atiçada por algo que escutei no consultório. Me disse a mãe, muito sofrida, que, no universo paralelo do instagram, “dizem” que, se fizer bastante terapia, você pode transformar uma autista nível 3 em autista nível 1.
Isso não só é uma bobagem, como é uma desinformação perigosa e vil.
A parte bobagem é a própria questão dos níveis de suporte. Isso é uma invenção do DSM-5 que, como tantas outras convenções, são feitas com uma finalidade prática, para fins de arquivo, documentação, classificação, organização, como queiram. É descritivo, não biológico. Não se trata de uma condição diferente, uma “doença” distinta, como dengue vs dengue hemorrágica, meningite viral vs meningite bacteriana.
Os níveis são classificadores usados para fins de simplificar a comunicação e projetar uma ideia do funcionamento do sujeito. A definição dos níveis é subjetiva, imprecisa, idade-dependente e contexto-dependente: ela naturalmente pode mudar. Um sujeito pode estar entre níveis. Sua comunicação pode ser nível 1 em casa e nível 2 em ambientes sociais, por exemplo. A pessoa pode mudar de nível sem qualquer terapia, simplesmente pelo desenvolvimento normal, um suporte bem construído do entorno, nada disso é incomum. A característica do autismo aos 2 anos pouco prediz a funcionalidade aos 12. Vender que terapia, particularmente muita terapia, é a chave do sucesso é um erro.
O perigo desse tipo de afirmativa é óbvio e caminha de mãos dadas com os potenciais conflitos de interesse por trás de afirmações dessa natureza. Não existe nenhuma evidência científica disso e – quem acompanha essas crianças na prática – sabe muito bem que não existe relação entre horas de terapia e desfecho clínico.
O que determina como a criança autista vai se desenvolver depende de dois fatores: a própria constituição neurobiológica do indivíduo (o fator mais determinante) e o entorno que o cerca, incluindo aí família, escola/comunidade e acesso a bons profissionais. Qual percentual é atribuível às terapias? Ninguém sabe, é uma fração desse todo.
O desenvolvimento de uma criança, com ou sem transtorno, é um produto da relação cérebro x ambiente, biologia x cuidados, herança genética x criação familiar. A palavra “tratamento” se quer deve ser aplicada nesse contexto. Não existe tratamento, existe terapia. E as terapias trabalham com o material que tem, num processo de mudança que precisa acontecer de dentro para fora e não de fora para dentro. Não se enfiam coisas no sujeito. Não é como ir ao dentista. Você senta lá na cadeira, aguenta, e a coisa acontece. O modelo de terapia como uma escolinha – o modelo pedagógico reinante – pressupõe que a criança pode e precisa ser “ensinada” coisas. O que em certos casos está mesmo correto, mas em muitos outros não. E a falta de clareza acerca disso é o que torna esse buraco cada vez maior.
Por fim, a vilania nesse tipo de declaração ficcional, tornar TEA 3 em TEA 1 como fruto de terapia, é criar um sentimento de culpa absurda em pais que, muitas vezes, já se sentem culpados pela própria condição da criança. Em pânico com um filho inteiramente dependente de cuidados, eles agora podem multiplicar o sentimento de falha, atribuindo-se uma dupla culpa, genética e financeira.
Respire. Filhos são como flores, como um jardim. Plantada a semente, o papel dos pais é cultivar, cuidar, manter o solo sempre fértil e protegido das intempéries. Uma rosa não será um cravo. É ver desabrochar e amar o que vier.
Texto necessário. Adoro a forma como tu traz essas questões🩷