Meu filho fala. Mas fala o quê?
Uma das principais causas de atraso no diagnóstico de TEA é a criança falar.
Não basta falar. Inúmeras vezes vejo como as questões de linguagem confudem as pessoas - tanto famílias quanto profissionais - quanto à possibilidade de um diagnóstico de autismo.
Crianças pequenas, de 2 anos, que falam muitas vezes passam abaixo do radar. Nem sempre é fácil reconhecer que uma criança que fala tem atraso de linguagem.
A verdade é que existem várias diferenças entre uma criança que tem somente atraso na fala e uma criança com autismo. Crianças com atraso de fala (sem autismo) se comunicam de múltiplas formas. Elas olham, gesticulam, apontam, fazem mil caras e sons para dizer as coisas. Elas buscam ativamente engajar as pessoas porque tem aquilo que chamamos de “intenção comunicativa".
Já a criança com TEA não. Ela pode até saber falar várias palavras, mas a intenção de se comunicar é menos nítida. Muita vezes os pais referem que ela “fala quando quer”, “o que quer”. O uso é esporádico, inconsistente, palavras antes usadas, desaparecem. Por vezes há criação de palavras, por vezes todo um discurso inintendível, como se falassem outra língua. Não raro, surgem palavras em inglês, reprodução de expressões de desenho animado ou de músicas infantis.
O primeiro ponto é entender a diferença entre 3 coisas: fala, linguagem e comunicação. Fala é a articulação dos sons. É o elemento motor, sonoro; é o mexer lábios, língua, toda estrutura de laringe para produzir e reproduzir sons específicos da língua. Linguagem é o código. São as palavras, frases, as construções, a forma e o sentido como as línguas se organizam - chinês, japonês, português. Comunicação é um dos usos da linguagem, talvez o mais rico deles, que é o uso da linguagem para se relacionar com as pessoas. Comunicação é o uso da linguagem no espaço entre duas (ou mais) pessoas.
Um exemplo que eu gosto de usar. Pense na palavra “pai". Nível 1, fala, é fazer a junção de 3 sons /p/, /a/, /i/. No nível 2, linguagem, “pai” é o nome ou rótulo que se atribui aquela pessoa sentada no sofá ou estampada numa foto (uso da linguagem para nomear ou descrever). No nível 3, quando digo "paaaaii!”, é um uso comunicativo - estou chamando meu pai.
Duas pessoas, comunicação.
Se comunicar quer dizer usar a linguagem para se relacionar com o outro. É comum que no desenvolvimento atípico de linguagem que se observa no TEA, pela natureza do quadro, o uso inicial da linguagem não para finalidades comunicativas. Muitas crianças pequenas autistas tem como primeiras palavras coisas como cores, formas, números, animais. Não só o vocabulário constuma ser diferente, mas também os usos da linguagem. Meses após as primeiras palavras, usadas para nomear as coisas que estão vendo, as crianças no espectro costumam usar a linguagem para pedir. Já é um esboço de comunicação, afinal pedir é pedir ao outro.
Mas na sequência, naturalmente, a gente quer mais. Quer ver a criança usando a linguagem para comentar, relatar, compartilhar experiências, falar das suas preferências e, quem sabe, querer saber das preferências do outro. Quer vê-la respondendo às perguntas e fazendo suas próprias perguntas.
Comunicar não é só falar para o outro, é falar com o outro - e o que muitas vezes é difícil é manter essa conversação. Fazer o pingue-pongue. Mas isso é uma outra conversa.