Tem alguns pacientes que eu adoraria que viessem com mais frequência no consultório, de tão fascinantes que são. Esse é um deles.
Conheci o menino pouco antes de completar 4 anos. Os pais o trouxeram, na época, basicamente para fechar o diagnóstico de autismo: já sabiam que se tratava disso. Tendo a experiência anterior de uma filha mais velha, neurotípica, me contaram que, de início, apostaram no fator pandemia. Perceberam o atraso de fala com 18m, iniciaram fono com 2 anos, estavam em atendimento também com uma psicanalista, bem amparados e orientados.
O menino é um doce, tem sardas e lindos olhos azuis que vagam pelo ambiente. É um pouco rígido, tem dificuldade de compartilhar e dividir brinquedos. A comunicação não é muito recíproca, a fala é telegráfica e com frequência ele se expressa em inglês (let's go, c'mom mommy, i love you). Ele tem dificuldade de socializar com crianças da mesma idade, mas é super afetivo e se vincula bem com adultos. Nessa última consulta, sentou comigo na poltrona, em frente ao computador, para brincarmos de escrever letras. Meu papel era ajudá-lo com a tecla shift para que as letras fossem “as pequenas", como ele queria.
Quando revi o prontuário, encontrei nas duas consultas anteriores, uma mesma observação: “atentar ao corpo”; “trabalhar sensório-motor, baixa propriocepção”. Geralmente escrevo isso quando observo a criança passando por cima das coisas no chão, sem desviar, pisando nos brinquedos; ou ela esbarra nos móveis ou, o que ocorre em 7/10 pacientes, me passam a sensação de que eles não conseguem perceber que o corpo está ligado à cabeça. Vão simplesmente andando atrás do que os atrai com os olhos, como se não percebessem o próprio corpo.
Tecnicamente, a propriocepção, também chamada de cinestesia, é a percepção consciente e inconsciente do corpo sobre sua posição no espaço, movimento e equilíbrio. Agora mesmo, nesse instante, você sabe exatamente onde está sentado mesmo sem olhar, porque o contato do corpo com as superfícies te dá essa informação. Essa percepção é possível graças a proprioceptores, sensores localizados em músculos, articulações, tendões e ligamentos, que enviam informações ao sistema nervoso central, de baixo para cima. Essas informações são captadas na periferia e transmitidas ao cérebro, que as processa e coordena os movimentos necessários para executar tarefas motoras, ou mesmo para manter o equilíbrio e o controle postural.
Esse controle e essa percepção de si e do próprio corpo são coisas que se desenvolvem muito precocemente, mas não nascemos com elas prontas. É só lembrar dos cueiros dos recém-nascidos, aqueles “charutinhos” de pano que enrolam firme os bebês nos primeiros meses de vida. A razão daquilo não é aquecer o bebê, mas sim evitar que movimentos súbitos e desorganizados dos membros (braços e pernas) terminem machucando ou assustando o bebê. O bebê ainda não tem um esquema corporal de si mesmo. Aos poucos, descobre que aqueles pés são seus, que aquelas mãos são suas, à medida que vai percebendo que controla os próprios movimentos, intencionalmente.
Esse menino – que tem 5 anos, frequenta a escola desde os 2, é altamente inteligente, mas autista – perguntou para mãe dia desses: “mãe, eu sou criança"? Sábia como uma coruja, na hora a mãe soube interpretar corretamente de onde vinha aquela pergunta. Não é uma questão dos fatos, das categorias. Não é uma dúvida semântica ou cognitiva. Ali a questão é relacionada à subjetivação, à capacidade dele de se perceber, se constituir e se reconhecer. Quem é ele? A gente só é criança (ou qualquer outro rótulo, mãe dedicada, pai ausente, professora querida) pela linguagem e pelas relações. Você precisa estar inserido na linguagem e nas relações para ser. Alguém diz que a gente é, a gente se identifica e se torna. (Por isso, muito cuidado com o que se diz na frente das crianças sobre elas mesmas!).
Quando ela me contou esse episódio, essa dúvida do menino, concordei com ela, mas queria aqui acrescentar uma camada extra nessa discussão.
Estranhamente, acho que os nervos periféricos também tem parte nessa jogada.
Imagine se você pisasse no chão e não sentisse o chão. Talvez você precisasse bater o pé para sentir. Ou arrastar os pés, para daí ouvir o barulho. Possivelmente você descobriria que, andando nas pontas dos pés, jogando todo peso do corpo numa área ou superfície menor, é capaz de sentir melhor. Imagine se você tocasse nas coisas e não conseguisse sentir bem. Talvez você colocasse na boca o objeto para entender melhor o que é. Talvez você apertasse ele, esmagasse forte, só para conseguir sentir.
Se quando você anda você não sente, não percebe o próprio corpo, você vive tipo fantasma, flanando pelo ar. Quando a propriocepção falha, o feedback pro cérebro de que você está ali se vai. Entendem onde quero chegar?
Por muito tempo, acreditou-se – e muitos ainda acreditam – que o TEA surgia apenas de alterações no funcionamento do cérebro. Mas isso não faz muito sentido, se considerarmos os fatos básicos sobre neurodesenvolvimento e a precocidade dos quadros de TEA.
Há décadas, se sabe que o cérebro se desenvolve muito guiado pelo que acontece no entorno, no ambiente. Tem um código básico, genético, para a formação da estrutura, mas a função, o funcionamento do cérebro, é fruto das interações com o ambiente. O estudo clássico sobre isso é do desenvolvimento do córtex visual. Wiesel e Hubel, prêmio Nobel de medicina em 1981, demonstraram que a estimulação luminosa, por si só, não é suficiente para o desenvolvimento normal do córtex visual. É necessário que a imagem na retina tenha um padrão e muitos contornos. Logo após o nascimento, o cérebro tem uma alta plasticidade e precisa que estímulos visuais ricos e variados aconteçam nesse período crítico para um desenvolvimento normal da visão. Ou seja, ser exposto – e conseguir captar — a informação que tá fora (no ambiente) influencia o desenvolvimento do que tá dentro (no cérebro).
Tudo isso para contar que tem uma pesquisadora americana publicando coisas brilhantes sobre o papel dos nervos periféricos no autismo. O nome dela é Lauren Orefice (recomendo esse artigo aqui dela) e o laboratório que ela coordena tem mostrado, em modelos animais (camundongos), que mutações genéticas ligadas ao TEA nos neurônios periféricos (e não no cérebro) prejudicam o desenvolvimento do sistema nervoso central, resultando não apenas em alterações sensoriais, mas também em dificuldades sociais e comportamentos semelhantes à ansiedade (em cascata?).
A boa notícia é que essa descoberta abre caminho para novas estratégias de tratamento. Intervenções que melhorem o funcionamento desses neurônios periféricos, especialmente quando aplicadas precocemente, podem reduzir questões de hipo ou hipersensibilidade, possivelmente ajudando a melhorar aspectos sociais e emocionais. Agonistas dos neurônios GABA estão pintando como potenciais candidatos a drogas moduladoras da reatividade tátil, por exemplo. É aguardar para ver.