Eu temia que isso acontecesse. Agora aconteceu.
Como o boom de neuropsicoespecialistas ameaça a segurança dos pacientes
Estou acostumada a ler laudos, pareceres e relatórios de todos os tipos. Bem feitos, malfeitos, úteis e inúteis. Não raro, são páginas e páginas de informações que não batem entre si, às vezes não batem com a criança ali na minha frente. A maior utilidade deles costuma ser me dar uma ideia do profissional que está atendendo a criança – que tipo de raciocínio clínico faz, se entende ou não do riscado (é impressionante a quantidade de gente que aplica testes e não sabe interpretar).
Como nem sempre fui médica, já fiz outras coisas da vida, consigo lembrar bem de um tempo em que eu, Renata, não sabia a diferença entre um psicólogo e um psiquiatra. Ou um psicanalista. Houve um tempo, pré-tomografia e ressonância, em que neuropsicologia era uma disciplina pequenininha (mas séria), que tentava encontrar relações entre o cérebro e o comportamento humano com recursos muito limitados – como, por exemplo, correlacionar o comportamento de uma pessoa em vida ao estudo do volume e estrutura do cérebro post mortem. Phineas Gage e tal. Muito do que se papagueia até hoje é fruto de estudos clássicos, pré neuroimagem, ainda válidos.
Ocorre que, nos últimos vinte anos, com a “popularização” das neurociências – década do cérebro, geração prozac, boom da ritalina – esse negócio de “neuro” virou um filão. Tem neuro tudo. Os primeiros a entrar nessa foram os especialistas em PNL, lembram? Programação NeuroLinguística. Pseudociência pura.
Fast forward no tempo e entramos, nos últimos 5-10 anos, na era da desinformação via rede social e dos “diagnósticos” da infância – todo mundo tem transtorno. Criança que desobedece tem TOD. Criança agitada tem TDAH. Criança difícil é autista (ou pior, autista e TOD). A quantidade de cursos, formações, extensões, especializações, mentorias, consultorias, grupo privado de whatsapp, live do instagram, é um troço sem fim de gente vendendo e gente comprando informação sobre neuro isso e neuro aquilo.
Daí não espanta que as pessoas, o cidadão comum (não você que me lê e é mais bem informado que a média 🙌), fique perdido na hora de buscar ajuda no campo do comportamento, desenvolvimento, aprendizagem. Qual especialista consultar? Existem várias opções, mas ninguém explica o que faz cada um. São vários títulos, parecem feitos para confundir o sujeito, cheios de prefixos que ostentam pompa e circunstância. Tipo neuro-psico-pedagoga.
Entra no consultório a mãe, a menina fica do lado de fora com o pai. Ela diz que prefere assim porque senão não conseguiria conversar direito comigo – a menina não pára, demanda muita atenção. Tem 5 anos.
A história que ela me conta não é coisa pouca. A menina tem uma epilepsia complicada; iniciou aos 3 anos, com crises de diferentes tipos (crises de ausência, atônicas e mioclônicas) e até hoje não cessaram, mesmo com o uso de dois anticonvulsivantes. A menina, que era atendida num hospital público da capital, tinha uma série de eletroencefalogramas (todos alterados) e um exame de ressonância cerebral também com alterações.
A essas alturas já estou ressabiada de que estamos falando de algo sério. Daí a mãe me solta a informação derradeira de que a menina, que desfraldou aos 2 anos, agora com 5 perdeu o controle de esfíncteres e a mãe está relutante em recolocar as fraldas. Arregalo meus olhos enquanto minha cabeça pensa – regressão neurológica. Nada assusta mais um neuropediatra do que isso.
A menina entra na sala, sorri animada com os brinquedos, e logo seu jeito de caminhar revela problemas sérios de equilíbrio. Ela esbarra, ela cai. Ela tenta, mas não consegue encaixar os pinos no tabuleiro; não lhe falta apenas coordenação, há um problema visual. E a epilepsia. E a lesão na imagem. E a regressão.
A essas alturas finalmente pego o papel que a mãe trouxe consigo, uma avaliação impressa de muitas páginas. No alto de cada folha, um logotipo colorido com uma imagem estilizada de um cérebro junto a uma caneta. É o parecer da neuro-psico-pedagoga. Diz que a menina tem talvez TDAH ou talvez autismo.
Essa mãe veio parar no meu consultório pela indicação da psicóloga (psicanalista) que, corretamente, identificou que não poderia tratar a menina sem que ela antes fosse vista por um médico. Sentiu que havia algo de errado ali e nem foi adiante na sua avaliação. Inclusive me ligou para expressar sua preocupação. Conduta impecável.
Já a neuropsicopedagoga estava “tratando” essa criança há meses e, como prova o laudo, sugerindo diagnósticos loucamente equivocados.
A mim compete dar as más notícias. Falei que não era TEA, nem TDAH, que era algo mais grave e que meu receio era estar diante de um quadro progressivo. Os pais tinham esse medo também. Fiz uma carta e encaminhei a menina dali direto para a emergência do hospital.
Como chegamos até aqui?
O final dessa história, o diagnóstico real da menina, chegou semanas depois, por exame genético, e é tão triste quanto vocês possam imaginar.
Lendo esse monte de laudos, eu sabia que um dia isso aconteceria. Que alguém atravessaria a porta do meu consultório carregando um papel sugerindo ou afirmando TEA ou TDAH quando, na verdade, o diagnóstico real era de uma doença grave.
Mas quando aconteceu foi um baque. Fiquei entre revoltada, abismada, incrédula com o que não sei se é falta de ética, noção, bom senso. Seguramente é falta de conhecimento e aí é que eu acho que estamos pecando nessa onda neuroespecialistas, geralmente formados em cursos livres online.
Quem faz isso a sério – e tem gente que faz – mantém as bordas bem definidas. Por exemplo, o cara é fisioterapeuta. Ele se especializa em fisioterapia neurológica. Fisioterapia neurológica pediátrica. Mega-especialista. Você não vai ver ele fazendo diagnóstico médico. Ele faz diagnóstico fisioterapêutico, ele conversa com o médico sobre as minúcias motoras que ele vê e eu não consigo enxergar. O fonoaudiólogo idem. Eles fazem diagnóstico fonoaudiológico. Deveria ser sempre assim, mas não é. Educador, por exemplo, não deveria jamais sugerir diagnóstico clínico. Deveriam dar diagnóstico pedagógico (e, curiosamente, isso eu não costumo ver). Avaliar o que, do ponto de vista pedagógico, explica as dificuldades de aprendizagem da criança: como a criança aborda os problemas, que estratégias usa, quais as habilidades dominadas, que tipo de raciocínio ou processo ela ainda precisa desenvolver. Isso raramente se vê nos pareceres pedagógicos. Mas sugestão de diagnóstico, após 8 ou 10 sessões de avaliação, isso quase sempre vem (acrescido da informação, lá no finalzinho do documento, “a ser confirmado por um médico”, algo que você deveria ter sido informado antes do início do processo para não perder tempo e dinheiro).
Não vou defender a minha categoria, acho que tem muito médico ruim e que parte desse cenário que vivemos foi/é causado por falhas na formação médica. Mas, na dúvida, o caminho mais razoável ainda me parece ser esse: consulte um médico primeiro. Você precisa de uma direção pro barco não se perder nas marolas. Não saia fazendo avaliações detalhadas sem ter um panorama geral. Nesse universo, neurologistas são generalistas; (neuro)fono, (neuro)terapeuta ocupacional, (neuro)psicólogo, (neuro)psicopedagogo são os especialistas – eles vão aprofundar, esmiuçar, ver os detalhes. Mas é preciso navegar pelas estrelas para não se perder nas ondas.
Que precioso esse texto!