Eu mudei de opinião sobre isso
Se nem mesmo os adultos, de pais a especialistas, vêem de forma clara o diagnóstico, não é demais esperar isso das crianças?
O assunto bateu na porta de novo esta semana. Não, não é o canabidiol – que segue sendo questionado por 9 entre 10 pais que aparecem no consultório. Acho que nunca antes na história um remédio gerou tanto frisson e intere$$e. Quando escuto “o que a doutora acha…”, posso apostar: vão perguntar do CBD. Seria curioso, risível até, se não fosse assustador [para saber o que eu penso a respeito, a explicação longa tá aqui].
O assunto é bem mais interessante – e eu mudei de opinião sobre ele no último ano.
Estava lá um casal queridíssimo, que tem um filho único, que vale por dois ou três. O menino tem 5 anos, é amoroso, inteligente, engraçado, líder e muito, muito intransigente nas suas vontades. Quando ele quer algo, insiste até cansar; não ouve mais nada, nem ninguém, até ganhar o que quer; tudo tem que ser na hora, agora, imediatamente. Qualquer coisa que soe como “não” ou “depois” encontra uma parede de protestos, gritos, choros e por aí vai. Soa familiar?
Esse menino tem TEA leve e muito provavelmente TDAH. Ele é aquela criança que as pessoas olham torto e acham que é um mal-educado, mimado, birrento, que é culpa dos pais, que não dão limite. Já teve que trocar de escola três vezes por conta do comportamento. Melhorou com medicação e na nova escola está tão bem que ninguém sabe do diagnóstico. Porém, em breve, ele deve ingressar na primeira série. E agora?
Revelamos ou não o diagnóstico para escola?
A minha recomendação, até pouco tempo atrás, costumava ser, sim, sem dúvida. Melhor deixar as coisas transparentes. Mas algumas experiências recentes têm me levado a pensar de outra forma. [Vou primeiro colocar aqui que este é um assunto sensível e delicado e que a discussão é pautada tendo em mente os casos leves de autismo: nível 1, fenótipo ampliado, traços autistas, “meio-autista”, perfil subclínico. Aqueles que “batem na trave” numa avaliação diagnóstica.]
A favor da revelação do diagnóstico para escola entra a questão da oferta de suportes. Não deveria ser assim, mas geralmente é. Sem um diagnóstico, a criança – em tese – não receberá nenhuma atenção especial, nenhuma ajuda extra, nenhuma flexibilidade por parte de professores e coordenação. Pior do que isso, seu comportamento será interpretado de forma errada: será visto como um aluno mal educado, indiferente, desobediente, desinteressado, desligado, por aí vai. Sua falta de habilidade será interpretada como falta de vontade e ele será julgado por isso.
Além disso, a favor da revelação, pesava na minha cabeça todo um discurso, que vem da própria comunidade TEA, de que a identidade autista ajuda o indivíduo a se entender melhor, se conhecer melhor e até mesmo se aceitar melhor. A pessoa vê que não está sozinha, que seus comportamentos tem uma explicação. Tiraria um peso dos ombros.
Ocorre, porém, que esta é uma fala que nos chega através de adolescentes ou adultos, que já conseguem fazer essa leitura do “eu” e do “outro” de uma forma mais consciente. Eles já estão mais constituídos na sua individualidade. Já sabem um pouco sobre si, quem eles são, não são, gostariam de ser. Mas e uma criança?
Ao ingressar na vida escolar, a criança ainda está muito imatura no processo de formação da sua identidade. Ela olha para os coleguinhas, convive no grupo, assume papéis e vai entendendo quem é ela na fila do pão. Essa identidade vai ser formada, em grande medida, a partir do grupo: da sua identificação (e não-identificação) com os membros desse grupo. Eu sou como este, não sou como aquele.
Aqui é que mora o perigo. Colocando um laudo na mochila da criança (ou um colar no seu pescoço ou um monitor na sua cola) eu, mesmo sem querer, empurro para ela uma concepção de si mesma que ela ainda não tem – de que ela é diferente dos demais.
O nó fica ainda mais complicado no momento em que a criança tem ao seu redor outros colegas autistas com quadros mais graves. Se muitas vezes é difícil para os adultos entender o “espectro” e a diversidade de apresentações do autismo, imagina para uma criança – que mal sabe quem ela é – agora tendo que conciliar na sua cabeça que ela e o colega são “os autistas” naquele grupo.
A verdade é que autismo ainda é algo visto e tratado de uma forma monolítica em muitos contextos escolares. Se fala em espectro, mas o tratamento dado é único. Se fala em personalização, mas o que se vê são ajustes padronizados, comuns para todo mundo que tem laudo. Existem exceções, é claro, mas a coisa de entender exatamente quais são as questões específicas e individuais do Joãozinho, do Pedrinho e da Mariazinha ainda parece uma realidade distante na grande maioria das escolas.
Não tendo como assegurar a forma como a criança será tratada pela escola frente ao diagnóstico, hoje, tenho uma tendência mais conservadora nesse sentido. Isso se estende também a falar sobre o diagnóstico para a própria criança, é claro. Vejo isso hoje com muita reserva. Embora haja casos em que falar não só ajuda, como parece necessário, em muitos outros casos é um grande tiro no pé.
Minha recomendação tem sido de ir com calma e sinalizar um processo em andamento: a criança está em acompanhamento, em avaliação. Uma cartinha para escola indicando que estamos cientes, iniciamos terapias, fiquem tranquilos, sabemos que há questões importantes — mas nada definitivo.
Fechar o diagnóstico pode ser também fechar uma porta. Melhor seguir se vendo como super-herói ou rainha, acreditando nos sonhos e fantasias que só a infância permite. Deixar viver as descobertas no seu próprio tempo, com acertos e erros, tombos e tropeços –- mas permitindo que as quedas dêem espaço para recomeços e que as tramas sigam abertas a todas as possibilidades. Não vamos nós enquadrar uma criança antes que ela mesma busque por contornos mais precisos.