Desistir não é uma opção
Foi exatamente isso que ela disse, sentada na minha frente, a cara firme e cansada por trás da armação larga dos óculos. Desistir não é uma opção para nós. Aquilo me atravessou como uma lança, uma sentença sem arestas. Sabia que a frase ficaria comigo e voltaria a me inquietar depois que eles saíssem dali.
E assim foi. Passei dias lembrando e tentando entender porque aquilo me incomodou, me incomodava. Eu conseguia entender o sentido do que ela dizia, o caráter de batalha, um misto de guerra com propósito de vida. Ela estava falando sobre o investimento, o empenho, o compromisso radical que eles assumiram como pais de uma criança autista. Eles fariam tudo que estivesse ao seu alcance, até o final. Pelo tempo que fosse necessário, ainda que consumisse todos os recursos e energia de que dispunham. Na voz dela, a frase era uma forma condensada de expressar o amor que colocavam nos cuidados daquele menino.
Filho de mãe branca e pai negro, o garoto era de uma beleza incomum. A mãe o vestia com primor, calça de sarja, gel no cabelo preto ondulado, um rapazinho elegante de 5 anos. Tinha traços suaves, todo ele era delicado, leve e lindo. Buscava o colo dos pais quando precisava conforto e esse encontro trazia ao seu rosto um sorriso largo e iluminado.
O menino recebeu o diagnóstico de autismo antes dos dois anos. Iniciou várias terapias, passou por vários neurologistas, tomou vários remédios, mas seguia se comunicando muito pouco, com uma linguagem verbal mínima.
Na primeira consulta comigo, o que a mãe queria era que ele parasse de se bater. Só isso.
Quando eles voltaram no mês seguinte, fiquei feliz de ouvir que estava bem melhor. Não só o menino, mas a família. Estavam todos bem melhor. Não sei se foi o remédio, se foi o papo franco (remédios ajudam, mas não vão resolver), se foi a relação que conseguimos estabelecer, se foi o tempo ou o acaso.
Enquanto eu almejava mais e pensava nos próximos objetivos atingíveis, ela me atirou a fatídica frase. Fiquei sem resposta na hora e agora tento organizar o que eu queria ter dito.
A verdade é que eu não queria que eles pensassem dessa forma, como se existisse uma linha de chegada, como se houvesse um ponto em direção ao qual eles correm sem nunca alcançar. Quanto mais correm, mais se cansam e o ponto parece sempre mais distante.
O que eles querem – em última análise, que o menino fale – não é uma conquista que depende do nível de investimento deles como pais, nem das práticas às quais a criança é submetida. Falar ou não falar não depende de esforço, treino ou técnica. Não é algo que muda com base no nível de insistência. Ainda que existam recursos facilitadores, que podem auxiliar (vide comunicação aumentativa e alternativa, CAA), não se trata de algo que possa ser suprido puramente pelo ambiente externo, pelas pessoas, pela ação do outro.
Quando eles dizem que não vão desistir, sinto que por trás disso existe uma outra faceta que revela um certo desconforto, um mal-estar, uma não-aceitação, uma dor talvez, com a condição de quem aquele menino é, hoje. Assume-se apressadamente que quem ele é hoje é quem ele será amanhã, exceto se eu fizer algo por ele, para ele. E em não aceitando quem ele é, vendo este lugar atual como um lugar de derrota, perde-se uma oportunidade enorme de aprender a ver a diferença pelo que ela é. Não desistir parece carregar uma forma de ver a diferença como deficiência, algo a ser superado, apagado, mudado.
Olhando bem, aquele menino não-verbal se comunica de muitas formas. Demonstra amor, dor, raiva e desejo de diferentes formas. Para ver isso e tudo mais de que ele é capaz é preciso primeiro aceitar, sem ressalvas, a diferença no seu jeito de ser, agir e pensar. É preciso um esforço consciente para pensar diferente e se dobrar para aprender a falar a sua língua, se inteirar da sua cultura, e se encantar (sem medo) com o que é novo e estranho para nós. Abandonar a bendita régua do “normal”. Sair do buraco sem fundo no qual ele sempre precisa “aprender” algo, alcançar outro objetivo. O mundo já é um lugar inóspito demais para eles, cercados por todo tipo de ignorância e preconceito, não vamos nós aumentar esse senso de isolamento.
O que eu sinto, nesse e em muitos outros casos semelhantes, é que a energia dos pais termina sendo despendida nas coisas erradas. São pais esgotados, a quem sobra pouco tempo e espaço para relaxar e curtir a criança, do jeito que ela é. É uma lástima que a sociedade olhe o autista com tanto preconceito. Mas me preocupa mais perceber que muitas vezes os pais terminam sendo puxados para este mesmo lugar e, ainda que inadvertidamente, acabam se juntando aos incautos. São pais fragilizados e sofridos, às vezes envergonhados, que se cobram e cobram dos filhos em níveis altíssimos porque supostamente precisa ser assim. Mesmo frente ao evidente esgotamento de ambos os lados, desistir não é uma opção.
Não se trata de desistir. Não sei se conseguimos deixar de idealizar o futuro, de sofrer com o presente, de parar de sonhar, de almejar mais. Acho que essas ambições podem viver na nossa cabeça, mas é preciso um certo cuidado para não impor nossos desejos sobre nossos filhos. Mesmo mantendo os olhos lá na frente, na suposta linha de chegada, é preciso não perder de vista a realidade do aqui e agora, desta semana, do dia de hoje. Aprender a apreciar e cuidar deste momento, dessa infância que não volta. Ninguém escolheu estar nessa posição, mas é possível escolher como viver estando nela.