Afinal, quem tem altas habilidades?
Inteligência superior não deveria ser um problema, mas aparentemente tem virado e ganhado status de diagnóstico. Quem dá conta de tanta confusão?
Todo mundo sabe que talentos e habilidades excepcionais podem se manifestar em diversas áreas ou disciplinas – artes, ciências, esportes, liderança e lá vai. Fora aqueles casos raros, de ilhas de inteligência, cuja expressão máxima são os até hoje pouco compreendidos “prodígios”, parece haver um fator geral de inteligência. Sabe-se que uma pessoa de inteligência superior tipicamente se sai melhor que a média, em tudo; ou seja, a inteligência tipicamente se expressa de forma ampla – numa turma, quem vai melhor no ditado, via de regra vai melhor também em álgebra, geografia e inglês (claro que existem exceções, e elas são de interesse para discussão que trago aqui). Embora nosso desempenho pessoal, intra-individual, seja variável (ou seja, somos melhores em A do que em B), no grupo, entre os indivíduos, a tendência é de que os melhores serão melhores em tudo, e os piores, piores em tudo.
Fato é que a inteligência, ou as inteligências, são um assunto complexo e polêmico, de Francis Galton a Howard Gardner, passando por James Flynn, mas essa longa história, por mais interessante que seja, não cabe aqui. Vou me focar no que vem acontecendo mais recentemente, quando adentraram no consultório uma nova leva de crianças: as que têm “altas habilidades”. Virou diagnóstico, aparentemente, embora não exista CID ou realidade biológica, nem mesmo nosológica estabelecida.
Como existem múltiplas formas de pensar e definir inteligência, isso termina gerando um caldeirão de confusão. Nem os teóricos, estudiosos da área parecem ter chegado a um consenso definitivo. Prova disso é a gama de definições sobre o que diabos seriam “altas habilidades", que variam conforme o campo de origem – educação, psicologia e as diferentes correntes, princípios e ideologias que cada uma delas abarca.
Existem múltiplos critérios para identificar superdotação e altas habilidades (SD/AH), termo que vou adotar aqui, mesmo não gostando nenhum pouco dele. Alguns defendem que este termo (ou rótulo, diagnóstico, etc) seja aplicado a indivíduos cuja avaliação de QI ou de algum outro teste (educacional, p.ex) evidencie uma pontuação acima de um ponto de corte específico (geralmente 1,5 ou 2 desvios-padrão acima da média). Outros incluem na definição domínios não tradicionais, como habilidades artísticas ou de liderança, que deveriam também estar presentes em níveis destacados. Atualmente, a maioria dos estudiosos e pesquisadores parece migrar para uma posição que reserva o termo SD/AH a indivíduos que apresentam não apenas características cognitivas superiores, mas também um conjunto de habilidades não-cognitivas, como criatividade e a capacidade de aplicar suas aptidões e potenciais a determinados domínios ou áreas de interesse.
Na prática, resumidamente, existem pelo menos 3 acepções ou formas de definir quem pertence ao grupo AH/SD. São eles (Subotnik et al., 2011):
indivíduos com elevado desempenho acadêmico;
indivíduos que pontuam pelo menos 2 desvios-padrão (DP) acima da média em testes intelectuais (o famoso e famigerado teste de QI, ou Quociente Intelectual);
indivíduos que exibem talento excepcional em uma ou mais áreas.
Existe ainda um quarto “perfil” – que me interessa particularmente – de indivíduos com alta capacidade intelectual que também possuem especificidades (ou sendo mais direta, dificuldades) socioemocionais. Enquanto aqueles três primeiros costumam estar bem e nem chegam aos consultórios, estes últimos sim, têm aparecido em número cada vez maior.
Essas definições de SD/AH, como se pode notar, são baseadas em diferentes concepções e modelos de inteligência. No primeiro caso (1), a superdotação é sobre o desempenho escolar. No segundo (2), reflete alto nível de habilidades intelectuais, que – devo frisar – não são garantia de sucesso acadêmico. Já o terceiro caso (3) refere-se ao desenvolvimento de habilidades que dependem de algum tipo de treinamento ou prática regular (talento musical, p.ex), e é baseado em modelos pluralistas de inteligência. Finalmente, a última concepção (4) deriva principalmente de prática clínica.
Do ponto de vista clínico, chama atenção que algumas crianças com potencial intelectual elevado apresentam dificuldades apesar do seu alto QI, e às vezes não conseguem ter sucesso na escola por diferentes razões. Embora tenham vários pontos fortes notáveis – como vocabulário superior, habilidades de resolução de problemas, raciocínio lógico e criatividade – elas encontram dificuldades em desempenhar todo seu potencial e capacidade cognitiva em ambientes convencionais. Na maioria dos casos, essas dificuldades são atribuíveis a desafios no funcionamento executivo, linguagem expressiva, atenção e foco e/ou registro físico (escrita) de trabalhos escolares.
Embora existam crianças de inteligência superior sem quaisquer dificuldades, aquelas que procuram ajuda médica frequentemente têm distúrbios associados. Diversos estudos já mostraram que, entre as crianças que vem a atendimento com suspeita de AH/SD, algumas apresentam características clínicas comuns a crianças com TEA. Ao mesmo tempo, crianças que receberam um diagnóstico claro de TEA também mostram altas habilidades cognitivas em testes de inteligência.
As características que sobrepõem-se nesses quadros geralmente incluem dificuldades nas relações sociais com pares, problemas emocionais, uso atípico da linguagem (jeito incomum de falar, tom professoral, rebuscado, por vezes descrito como “pedante”), foco intenso em interesses especiais ou específicos, alterações sensoriais, retraimento no mundo da abstração (imaginária e/ou intelectual), déficit de atenção e falta de jeito ou coordenação motora em geral (distúrbios de práxis).
Muitas dessas crianças já chegam ao consultório trazendo um teste de QI ou uma avaliação neuropsicológica completa. É interessante notar que, com frequência, essas crianças/adolescentes apresentam discrepâncias consideráveis nos índices que compõem o teste de QI, sendo a Escala Wechsler de Inteligência para Crianças — ou WISC — o teste mais frequentemente empregado para obter essa medida. O perfil mais comum encontrado em indivíduos com AH/SD no WISC-IV pode ser caracterizado por alto desempenho no Índice de Compreensão Verbal e baixo no Índice de Velocidade de Processamento. Esse perfil também é frequentemente observado no TEA com QI superior.
Nem todas as crianças, obviamente, terão todas essas características. Embora AH/SD e TEA não sejam diagnósticos mutuamente exclusivos, é importante observar que uma grande proporção de crianças com AH/SD partilham certos sinais, sintomas ou características com crianças com TEA (ou TDAH), sem contudo atender totalmente aos critérios diagnósticos para estes transtornos. No caso em que ambas as coisas estão presentes, falamos em “dupla excepcionalidade”.
Independente do rótulo, que não explica tudo, o importante é analisar quais são as reais dificuldades da criança e os motivos que as justificam. Assim, por exemplo, algumas crianças com AH/SD podem sofrer com o isolamento social porque não encontram pares intelectuais apropriados; outras, porque têm dificuldade em captar as nuances e os não-ditos dos jogos sociais. As implicações e condutas serão totalmente distintas em cada caso.
Como em tudo, é fundamental adotar uma visão individualizada, que apenas parta dos rótulos diagnósticos, mas vá em busca das experiências e necessidades específicas de cada criança. Somente compreendendo o contexto particular de suas dificuldades, é que podemos pensar e promover intervenções mais eficazes, respeitosas e ajustadas ao seu desenvolvimento, favorecendo um ambiente em que possam explorar seu potencial único e fascinante.