Afinal, quem é Pedro, João ou Maria?
O que está por trás do clássico sintoma "ausência de resposta ao nome" no autismo
Renata,
Sei que meu filho não é surdo. Percebo que ele escuta até um alfinete cair no chão. Mas frequentemente, no convívio, é como se fosse. Raramente ele olha para nós quando é chamado. Não consigo entender. Afinal, por que isso acontece?
Talvez você nunca tenha parado para pensar sobre isso, mas lá vai. João só é João através de outra pessoa. Cada pessoa só reconhece o seu nome através de uma relação formada com outras pessoas. Solto no ar, jogado ao vento, o nome João poderia indicar qualquer pessoa — ou coisa. Eu só respondo e assumo João como minha identidade porque me relaciono com o Outro, que me atribui esse nome.
Sei que é um pouco etéreo, mas acho que dá para entender o ponto. No universo da psicanálise e das considerações mais “mentais” sobre o autismo, a resposta gira um pouco em torno disso (obviamente que com camadas muito mais complexas). O reconhecimento de que Renata sou Eu depende, primeiramente, disso tudo estar organizado na minha cabeça - o eu, o outro, o mundo, o espaço entre nós. Eu acredito que parte da resposta tem sim a ver com isso — mas que não é só isso.
Vou acrescentar duas outras perspectivas complementares: a da neurociência e a da psiquiatria.
No lado da neurociência, a resposta tem a ver com percepção. O autismo é fundamentalmente, até onde sabemos, um distúrbio de natureza primariamente sensorial - muito do resto vem em consquência de alterações que são, originalmente, relacionadas a entrada e ao processamento da informação que chega de fora através dos sentidos. Desconheço um autista que não tenha um sistema visual muito apurado. Talvez essa seja a característica mais nuclear do autista — ser um ser visual. Já o grau de disfunção do sistema auditivo [e dos outros sistemas sensoriais] por outro lado, é variável, do leve ao severo.
Curiosamente, uma das evidências que temos é de que o córtex auditivo verbal — a parte do cérebro que processa aquilo que é falado com voz humana — dos autistas é menos responsivo, ou seja, se ativa menos quando alguém fala. É como se os neurônios ficassem abafados, sem disparar, sem se acionar com a entrada desse tipo de estímulo. Então parte do problema está aí: o cérebro parece meio dormente frente a esse tipo de estímulo de linguagem.
Mas a peça que eu considero mais importante — e é onde a psiquiatria acertou em cheio na descrição — é a chamada baixa reciprocidade socioemocional. Por trás do nome tecnicoso está essa característica (que pode ser considerada déficit ou habilidade, dependendo do ponto de vista de cada um) de ignorar o que não interessa. Nós, os típicos, nos guiamos imensamente pelo social. A gente faz pelos outros, porque os outros, para os outros. Nosso comportamento é, por natureza, social; diretamente atrelado às expectativas, ritos e convenções sociais.
Querendo ou não, busco e encontro gratificação no outro, desde bebê. Saímos em disparada ao menor sinal de que alguém está nos chamando; abrimos um sorriso frente ao sorriso do outro; respondemos às perguntas mesmo quando contrariados. Estamos sempre nesse jogo de vai-e-vem, nessas trocas, como duas pessoas numa gangorra. E, até por isso, sentimos intimamente o desequilíbrio de uma relação assimétrica, onde um não responde, ou responde menos.
É um misto de tudo isso e provavelmente muito mais. Mas resposta já tá longa. Com o tempo, com sorte, saberemos mais.
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