Acreditar no inacreditável - sobre autismo e telepatia
The Telepathy Tapes é um podcast de sucesso e, confesso, estou lutando para não acreditar
Abismada, pasma, confusa, sem palavras. Não sei por onde começar a contar a vocês essa história. Mas foi assim: na última sexta-feira, enquanto eu calmamente tomava meu café da manhã antes das crianças acordarem, meu marido me contou que estava ouvindo um podcast sobre uma história bizarra de crianças autistas telepatas.
— Tá falando sério? perguntei.
— Coloca aí para gente ouvir — ele respondeu.
Ora, amigos, eu sou médica, me considero uma pessoa “da ciência”. Fiz mestrado, doutorado e costumo torcer o nariz para soluções inovadoras, últimas tendências, modismo sem evidência, achismos sem respaldo. Confesso, sem orgulho, que não tenho religião e que me falta espiritualidade, crença no divino ou no sobrenatural. Sou dada a acreditar no que vejo, nos dados, nos fatos, no objetivo. No máximo, acredito em intuição e instinto materno – e acho que é só. De resto, sou materialista, concreta até o último fio de cabelo.
Mas eis que me aparece o The Telepathy Tapes. Trata-se de uma mini-série em áudio, com 10 capítulos, que se tornou um dos podcasts de maior sucesso atualmente nos EUA ao retratar a história de crianças autistas não-verbais que demonstram comunicação telepática. É isso mesmo que você leu. Elas são capazes de dizer – ou mais precisamente, soletrar em um quadro ou tablet – o que está na cabeça de outras pessoas.
Na série, a documentarista Ky Dickens nos apresenta Mia, Akhil e Lily, três adolescentes autistas, que vêm sendo investigados por uma polêmica psiquiatra de nome Diane Powell (a licença médica dela chegou a ser revogada por uma denúncia de que ela estava psicótica, mas ela conseguiu provar que não, que realmente queria apenas estudar fenômenos psíquicos extra-sensoriais). Eles são três, mas alegadamente esses fenômenos seriam comuns a uma parcela dos autistas não-oralizados.
Tudo em mim queria, e quer, não acreditar no que está ali, no que vi e ouvi, mas confesso que não tá fácil. A série começa com experimentos simples: a entrevistadora pensa num número aleatório, escreve num papel e mostra apenas para a mãe, que então pergunta à criança (que pode estar do outro lado da mesa, com uma venda nos olhos, ou mais distante, em outra sala) qual é o número. Sendo todos autistas não-oralizados, eles apontam a resposta utilizando algum suporte de comunicação alternativa. Os testes vão se tornando mais complexos e variados, testando palavras, figuras, cores, ideias. Pensadas por um ser humano ou geradas aleatoriamente por computador. O que quer que seja, as crianças acertam, 100% das vezes.
Dali em diante, o universo dos fenômenos extra-sensoriais explorados pela série se expande para searas bem mais polêmicas, tais como falar com antepassados, lembrar coisas que aconteceram nos primeiros meses de vida ou “conversar em grupo” com outros autistas não-verbais através da mente. Cada um na sua casa, eles se encontram “on the hills”. Uma nova forma de encontro virtual.
A série foi ao ar despretensiosamente, sem publicidade, no final de 2024 e foi ganhando audiência e destaque. Deve virar filme, porque tudo foi filmado, com diversas câmeras e supostamente com todo o cuidado para evitar que qualquer trapaça estivesse em jogo. Ainda que o bafafá em torno do programa seja predominantemente de ceticismo – do qual me obrigo a compartilhar – confesso que ainda não encontrei algo ali que me sugira claramente que é tudo mentira e que aquelas crianças não são, de fato, capazes daquilo. Conectar-se à mente de outras pessoas? Isso é mais do inquietante, é desconcertante.
De útil, concreto e inquestionável, achei interessante ver como um método antigo de comunicação – o RPM (rapid prompting method) – desabonado pela ciência tradicional e criticado pela fonoaudiologia tradicional, funciona bem para alguns indivíduos nessa ponta do espectro. Na palavra das mães, esses métodos de soletração deram a seus filhos uma voz e permitiram-lhes ver o quanto eles sabiam.
É aquela história, já comentei por aqui: presuma competência. O fato da criança não conseguir controlar o corpo ou o comportamento não significa que ela não está entendendo o que é dito ou o que se passa ao redor. Foi legal ouvir também uma dessas crianças dizer, com todas as letras (literalmente!), aquilo que presumimos clinicamente, por observação: é como se elas não conseguissem reconhecer que o corpo pertence a elas. Há uma dissociação corpo-mente.
Talvez porque estejamos vivendo num mundo polarizado por delírios conspiratórios, o interesse em questionar e desbancar a ciência mainstream encontra um prato cheio nessa série, que já foi comparada ao The Blair Witch Project (só os mais velhos lembrarão :-). Num momento em que os EUA dão palco e holofote a um ministro da saúde que propaga discurso anti vacina e segue vociferando mentiras infames (de que vacinas causam autismo), deixando ressurgir uma epidemia de sarampo (que já matou uma criança) – o que esperar do discurso popular? Se antes acreditar em boatos e rumores era atestar a própria ingenuidade, hoje virou um valor daqueles que imaginam ter informações paralelas que fogem da “grande mídia”. Nesse cenário, paranormalidade e outras excentricidades tem mais do que apelo, tem desejo de validação.
Deixo para vocês julgarem o que há ou não de verdade ali, para além de bom entretenimento (não consigo parar de ouvir!). Pra mim, all and all, ecoou a mensagem de que, por trás de todos os incríveis e surreais fenômenos retratados, existe um poder mágico bem conhecido e nem sempre valorizado – o poder da conexão entre pessoas.
Essas crianças vivem isoladas numa frequência AM, enquanto o resto da humanidade navega em ondas FM. Precisamos sintonizar – ter capacidade de ouvir o outro, se colocar no lugar, estar aberto a entender, ouvir, apreciar, observar sem intervir. Lutar contra as nossas próprias percepções, sempre tão engatilhadas e prontas a julgar e interpretar tudo à luz da nossa verdade ou referência pessoal de “certo” ou “normal”. Pode bem ser que, afinal, para achar a conexão, seja mesmo preciso abrir mão dos nossos sentidos e acreditar no inacreditável.