Sempre ouvi especulações de que os grandes nomes da indústria da tecnologia – Bill Gates, Steve Jobs, Elon Musk — eram do espectro autista. Nunca fui atrás para saber se é mesmo verdade, mas a tirar pelo que é retratado em filmes e documentários a ideia parece ter fundamento, nos três casos.
Agora, o próprio Bill Gates está falando sobre isso na sua recém-lançada autobiografia, “Código Fonte”. O primeiro dos três livros cobre a infância de Gates e, numa entrevista recente, ele disse que, nos dias atuais, provavelmente teria sido diagnosticado como do espectro autista.
Houve um período em que Bill – na sexta série – foi extremamente difícil. “Eu poderia passar dias sem falar, saindo do meu quarto apenas para as refeições e para a escola”, escreve ele em “Código Fonte”. “Me chame para jantar, eu te ignoro. Diga-me para pegar minhas roupas, não. Limpe a mesa – nada.”
“Eu os estava provocando”, disse ele em nossa entrevista. “Não achava que eles tinham alguma lógica para explicar por que eu tinha que mostrar respeito por eles. Minha mãe era muito insistente sobre 'Coma assim', 'Tenha essas maneiras' e 'Se você vai usar o ketchup, você tem que colocar o ketchup em uma tigela e colocar a tigela aqui'. Ela me considerava muito desleixado. Porque eu era.
Não se tratava realmente de ketchup, é claro. “Eu não tinha nenhum sentimento negativo em relação a ela, mas podia fingir que não me importava com o que ela dizia de uma forma que definitivamente a irritava”, disse ele.
Ao mesmo tempo, ele diz isso, sobre o papel da mãe:
“Eu queria superar as expectativas dela”, disse ele. “Ela era muito boa em sempre elevar a barra.”
Já falei sobre isso aqui, em outro texto, sobre o papel da família em puxar a criança autista na direção de padrões socialmente adequados, evitando acomodações excessivas e prejudiciais à própria criança. Não é sobre isso que quero falar hoje, mas sobre como não ter recebido o diagnóstico pode ter sido bom para Gates. Inominado, o autismo foi uma vantagem.
Se Gates estiver no espectro, ele agora acha que isso deu uma vantagem à Microsoft. “Eu não acreditava em fins de semana; Eu não acreditava em férias”, disse ele uma vez. Ele sabia as placas de seus funcionários para poder verificar se eles tinham tentado voltar para casa.
Não sei se a mãe chegou a ir atrás de uma opinião médica, de algum especialista, para entender o que se passava com seu filho. Ao invés de ver problema (“hiperfoco", "interesses restritos ou repetitivos"), a mãe confiou e permitiu que Gates perseguisse suas inclinações e habilidades, desde que seguisse colocando os pratos na pia. Ele não precisava ser super social ou gostar de praticar esportes. Sem focar nas dificuldades, ele se desenvolveu naquilo que era bom — ou ótimo. Como ele próprio diz, sua mãe intuitivamente sabia o que ele precisava. Alguém aí ainda consegue agir assim?
Toda e qualquer intuição hoje está a um segundo de ser demolida. Basta uma rápida pesquisa na internet e você começa a se questionar. Mesmo ciente dos algoritmos, das arapucas comerciais e dos interesses financeiros de quem explora e vende problemas e suas falsas soluções, vejo os pais minimizarem o peso e o valor da própria opinião. Bom senso, senso comum, prioridades básicas de uma vida familiar, da infância, tudo fica à mercê do “diagnóstico” e das previsões de um futuro catastrófico que só poderá ser evitado à custa de muito dinheiro e sacrifício.
Acontece que nenhum dinheiro do mundo compra o desenvolvimento natural de um organismo. As coisas são o que são e a margem de manobra, a partir de estímulos externos, opera numa faixa estreita quando se fala em “neurodesenvolvimento” (já o espaço de mudança a partir das próprias potencialidades internas, do cérebro em desenvolvimento, são enormes). Devíamos ter um pouco mais de humildade ou transparência em relação ao quanto somos capazes de modificar as coisas.
Num mundo em que pais e mães, os maiores experts e interessados nos próprios filhos, são silenciados pelo barulho de quem grita mais alto, fica difícil escutar a própria intuição. E advinha quem termina pagando a conta dessa pressão toda?