O áudio começava como de costume:
— Doutora, desculpa incomodar…
A voz era embargada, desolada ou, para usar as palavras dela, desesperada. Mais uma vez, ela tinha sido chamada pela escola por conta das dificuldades do filho. No 3o ano, ele ainda lê silabado e escreve truncado; não presta atenção em aula e, ainda por cima, se mete em confusão com colegas e professores.
O menino toma remédio.
O menino faz terapia.
O menino tem psicopedagoga.
A cada uma dessas intervenções, o menino melhora, mas as dificuldades persistem (o que define de forma precisa a palavra “transtorno” - no quick fix). A família providenciou tudo que podia, mesmo estando acima do que o orçamento permitiria.
O que a escola queria mais? Não era azucrinar a mãe, culpabilizar a família ou expulsar o garoto. Eles queriam era um laudo.
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Pediram para ela procurar uma “cientista” (foi esse o termo usado para definir uma neuropsicóloga), alguém que ao final de umas dez consultas e uns milhares de reais diria afinal o que ele tem (e provavelmente sugeriria, lá no última página, também uma consulta com neurologista para confirmar o diagnóstico). Mas a escola já deu seu palpite: sugeriram TDAH, dislexia, deficiência intelectual, talvez autismo.
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Eu não sei se me deu mais indignação com a escola ou pena dela. Essa família já foi atormentada pela suspeita de autismo quando o menino tinha 2-3 anos. Caíram, se recuperaram, estavam bem. Até que a fase escolar evidenciou novas dificuldades.
O que mais me indigna nessa história é que a escola argumentou para a mãe que, “só com TDAH”, eles não podem fazer muita coisa
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Vejam que inversão maluca das coisas estamos vivendo. O fato de que as crianças com um diagnóstico X têm direito - por lei - a uma determinada coisa (e as com diagnóstico Y a outra coisa), fez com que as escolas se organizassem de forma que - só com o laudo - elas possam oferecer aquilo que elas entendem que a criança precisa. Ou seja, as necessidades pedagógicas, o diagnóstico pedagógico, as práticas pedagógicas passaram a estar na dependência de um laudo médico. A escola percebe as dificuldades da criança, sabe o que pedagogicamente poderia ajudar, mas não oferece – porque não tem o laudo.
Veja: o fato de que ter dá direito (quem tem pode exigir) não implica necessariamente que não ter não pode dar acesso a tudo o que a escola pode oferecer para ajudar uma criança. Quem tem ganha ajuda, quem não tem, que trate de ter, porque a gente não pode ajudar sem laudo. Esse tem sido o recado.
Eu entendo, obviamente, em especial no contexto da educação pública, mais carente de recursos, que não dá para sair contratando monitor para todo mundo. Que isso tem um custo e repercussões administrativas, etc. Acontece que o percentual de crianças que precisa de ajuda não varia muito - ele fica em torno de 10% da população em qualquer contexto. Numa sala de 25, entre 2 e 3 alunos precisarão de suporte. Logo, o amparo deveria estar previsto para qualquer criança que precisa, independente de laudo, CID, diagnóstico.
Só eu vejo algo muito errado nisso?
O pior na estória desse menino é que um dos diagnósticos que ele de fato tem é dislexia. E existe uma cultura (equivocada, mas bem estabelecida no meio) de que a gente deve esperar dois anos (2 anos!!) de escolarização para fechar esse diagnóstico (cujos sinais são visíveis já na pré-escola). Dois anos seria o tempo de confirmar o que se chama de RTI (response to intervention): mostrar que, mesmo com intervenção adequada (ou seja, mesmo fazendo psicopedagoga 2x por semana pelo menos), as dificuldades da criança são persistentes.
As escolas – que têm uma referência muito precisa do que é a média e de quem está um pouco ou muito fora da média – ao invés de agir prontamente oferecendo todos os suportes e recursos tal como se a criança fosse disléxica, precisa esperar. Esperar o laudo. Por que mesmo? Onde foi parar a autonomia e a prerrogativa das escolas sobre as questões pedagógicas?
Por mais que eu discorde, eu entendo as escolas. As leis (ou a interpretação delas) criaram um monstro. Que pressiona médicos a dar diagnósticos rápidos e famílias a ter que aceitar o mais rápido possível que o filho tem um problema. Não há tempo a perder, a escola precisa do laudo.